O racismo amarelo é um tema que ganha, aos poucos, força nas redes sociais. Porém, ainda tem um longo caminho a seguir para ser visto como uma problemática racial. Com a chegada da pandemia da Covid-19, o preconceito com pessoas desta origem ficou mais intenso, principalmente para com aqueles que são chineses e descendentes.
A artesã Mariana Chen, 20 anos, é um exemplo dessas pessoas. Ela ajuda seus pais em uma pastelaria na região metropolitana do Rio e conta que em toda sua vida ouviu comentários maldosos a respeito de suas origens e de sua família. Com a pandemia do Coronavírus, que começou na cidade chinesa de Wuhan, as micro agressões aumentaram. Confira a entrevista exclusiva de Mariana, que é brasileira com descendência chinesa, para a Agência UVA:
Agência UVA: O racismo amarelo é uma pauta que vem ganhando força recente, mas especialistas enxergam ser anterior ao momento presente. Quando você percebeu que certos comentários escutados ao longo da vida tinham um nome e se chamava ‘racismo amarelo’?
Mariana Chen: Desde pequena escuto esses comentários, infelizmente. Mesmo que seja em um tom de brincadeira, nunca é. Percebo como algo chato e sem necessidade. Desde pequena escuto essas coisas, então fui me acostumando, mas só percebi que era errado com o tempo. Sempre vivenciei isso, mas só fui entender mesmo sendo mais velha.
AUVA: No seu ponto de vista, mais pessoas precisam conhecer sobre o racismo amarelo? O que falta para o tema alcançar mais pessoas?
MC: Um dos motivos pelos quais eu quis fazer essa entrevista é para que mais pessoas comecem a entender sobre a temática e parem de discriminar pessoas de origem chinesa, japonesa, coreana. É algo natural no Brasil ficar ‘zoando’ pessoas amarelas, então, realmente isso precisa ser discutido.
AUVA: O racismo amarelo sempre existiu, as agressões verbais e até mesmo físicas sempre existiram, mas sabemos que depois da chegada da Covid-19 ficou pior. Você, ou alguém que você conhece, sofreu algum tipo de agressão depois que a pandemia começou?
MC: Posso citar alguns casos. Quando houve o lockdown no Brasil, quando tudo parou, a minha família não saiu de casa para nada porque estávamos com muito medo. Era uma coisa muito incerta, ninguém conhecia essa doença direito, e como minha avó é mais velha, a gente não saiu de casa. Se passaram alguns meses até que aqui em casa começaram a faltar mantimentos, porque a gente não ia ao mercado, então minha mãe resolveu ir para abastecer a casa. Lembro de que esse dia foi tão tenso porque eu estava com medo, da doença em si e por também achar que poderia acontecer algo com ela por ser chinesa. Lembro de que, na véspera do dia de ela ir ao mercado, eu fiquei sem dormir, preocupada com o que poderia acontecer na rua. Graças a Deus nada aconteceu, mas fiquei muito nervosa. A cada saída que meus pais faziam eu ficava apreensiva, tanto que só fui sair de casa depois de muito tempo quando as coisas começaram a abrir.

(Foto: Acervo pessoal)
AUVA: Medo até de sofrer alguma agressão física?
MC: Sim, agressão física, principalmente. Ficava com medo de os meus pais serem machucados. Eles não sabem se comunicar muito bem, falam um pouco de português, mas não conseguiriam resolver um problema como este. Tive muito receio por eles nessa primeira fase do lockdown. Uma vez, eu estava na pastelaria trabalhando, logo depois da liberação do uso da máscara. Eu e minha família continuamos usando a máscara por causa da minha avó e até hoje ainda uso.
“Chegou um cliente me encarando estranho, e falou: “por que vocês estão usando máscara se foram vocês que trouxeram a doença?”. Eu fiquei tão em choque que não consegui responder nada. Para que falar uma coisa dessas? A pandemia foi para todo mundo, só porque eu tenho descendência chinesa não significa que tenho culpa”, diz Mariana Chen.
AUVA: Nossa… que triste. Sentimos muito.
MC: Houve outra vez, em que eu estava na farmácia com a minha irmã, e um cara começou a nos questionar falando da China e do Coronavírus, rindo como se fosse uma piada. Eu e minha irmã pedimos para que ele parasse, e até os funcionários da farmácia pediram o mesmo, reforçando que não tínhamos nada a ver com isso. As pessoas tratam a temática como se fosse piada, mas para a gente que escuta isso realmente machuca, tanto que ainda lembro desses casos. Recentemente, eu estava andando na rua com a minha irmã num dia normal e um homem mais velho passou pelo nosso lado falando: “aqui não é Japão, não”, e foi embora.
AUVA: Em algum momento da pandemia você percebeu que as pessoas evitaram comprar na pastelaria por ela ser de donos chineses?
MC: A maioria dos clientes que frequentavam a pastelaria antes estão até hoje. Apesar disso, acontece uma coisa realmente estranha: quando alguns garotos adolescentes passam em frente, ficam gritando “Coronavírus”. Eles não são clientes, mas resolvem soltar uma piada quando passam. Não são pessoas que eu conheço e convivo. Por esse motivo específico acho que as pessoas não evitam, até porque sempre tomamos cuidado. Como eu disse, a gente usa máscara até hoje.
AUVA: Vocês usam a máscara primeiro pela proteção contra o vírus, mas já sentiram medo de as pessoas verem que vocês são chineses e não estão usando máscara?
MC: Nunca parei para pensar nisso, tanto que o homem me questionou por eu estar usando máscara. Acho que não é por isso. A gente usa mesmo pela segurança da minha avó.
AUVA: Você ainda hoje sente esse medo de sair e sofrer alguma agressão?
MC: Aqui na minha cidade, não [Mariana mora na região metropolitana do Rio]. Saio todos os dias para trabalhar tranquila, só tenho um pouco de receio quando vou ao centro do Rio, porque não tenho costume de andar por lá, ainda mais quando ando de trem e ônibus. Já vi várias reportagens de pessoas amarelas sendo agredidas a troco de nada no trem, por exemplo. Houve uma menina que foi xingada por uma idosa só porque ela é amarela. Relacionado ao Coronavírus e como as pessoas relacionam a doença aos chineses, ainda tenho um pouco de medo, menos que antes, mas ainda tenho receio sim. Já fico mais preparada para caso alguma coisa aconteça. Fico atenta, então sim, infelizmente, existe esse medo.
AUVA: Você ainda tem medo pelos seus pais? Eles saem da região em que vocês moram?
MC: Eles saem, mas é para um núcleo só de chineses. Eles não saem normalmente para passear. Sinto mais receio por mim e por minhas irmãs que saímos toda hora para passear.

(Foto: Acervo pessoal)
AUVA: Em relação à pastelaria, você já percebeu se as pessoas têm a visão de que é um lugar sujo por ser de donos chineses?
MC: Com certeza. Quando lançaram aquele boato de que algumas lanchonetes no Centro do Rio usavam carne de cachorro, lembro de vários comentários. Até hoje eu escuto, de forma mais discreta, mas na época todo mundo falava: “isso é carne de cachorro, carne de pombo”, essas coisas desnecessárias. Não questionavam se a gente fazia isso, mas comentavam fazendo piada. Hoje em dia escuto menos, mas ainda percebo que há pessoas com um pé atrás por causa disso. É real, sim.
AUVA: Você já chegou a ver alguma violência contra seus pais e suas irmãs?
MC: Violência verbal, já. Tem umas pessoas que imitam o tom da minha mãe ao falar, quando ela troca o L pelo R porque não sabe pronunciar o R. Toda vez que isso acontece eu mesma gosto de ir lá e atender, porque eu tenho cara de chinesa mas falo o português muito bem e claro. Vou lá e falo bem falado. Eu detesto isso, e já não gosto de quando é comigo, mas quando é com a minha mãe e com meu pai, que não têm como se defender, eu fico uma fera. Então, trato essa pessoa que faz essas piadinhas bem curta e grossa. Não gosto de quando isso acontece com eles.
AUVA: Como as pessoas podem combater este tipo de racismo?
MC: As pessoas devem se conscientizar. Uma das formas é lendo sobre. Muitas pessoas ainda não conhecem, não sabem que isso é uma questão. Por isso, quando essa reportagem sair, vou compartilhar com todo mundo. Como você falou, é uma coisa muito nova, mas que sempre existiu, só não era falada. As pessoas devem procurar entender sobre qualquer coisa importante, para poder saber a gravidade daquilo e agir de uma forma melhor.
Foto de capa: Quân Lê Quốc/Pixabay
Repórter Juliana Ramos com edição de texto de Victoria Muzi e Gabriel Folena.
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Que tema relevante. Apesar de triste a história da Mariana, ela precisa ser contada e anunciada, pois só assim podemos entender que racismo amarelo existe sim.
Parabéns pela entrevista.
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