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Fanfics abrem portas para escritores na literatura brasileira

O fenômeno das histórias escritas por fãs não é novidade, mas, agora, ele provoca mudanças no mercado editorial.

A literatura contemporânea vai além dos livros físicos e está em constante transformação ao longo do tempo. Hoje, o mundo dos escritores é não apenas muito mais amplo, como mais próximo dos leitores devido às redes sociais. Aliás, a internet facilitou outro aspecto do mercado literário: a auto publicação, muito utilizada por iniciantes. E tal formato abarca tanto histórias originais quanto as famigeradas fanfics.

Em diversas plataformas como Wattpad, Spirit e AO3 o público tem contato com as fanfictions, ou “ficção de fãs” em tradução direta, que nada mais são do que narrativas criadas por fãs inspiradas em vários tipos distintos de produção artística – seja outros livros, filmes, músicas – ou até mesmo elementos reais, como a vida de artistas famosos. 

Assim, as plataforma de escrita independente tem sido uma porta de entrada de jovens para o universo das fanfics. Mas a popularização dessas criações dá margem para o surgimento de críticas e estereótipos em relação a produtores e leitores das ficções feitas por fãs. E, por outro lado, as opiniões pejorativas de pessoas de fora desse universo também vêm ganhando popularidade.

Dessa forma, o comentário negativo mais comum se refere aos ficwriters – denominação dada a escritores de fanfics – como crianças de 13 a 16 anos que escrevem qualquer má ideia, sem aprofundamento, polidez ou qualidade. Os leitores, por outro lado, são chamados de “sem cultura” porque, aos olhos dos críticos, fanfic não é literatura e leitores desse gênero são inferiores.

Para a escritora e jornalista Isa Feijó tais afirmações são, além de bobagem, uma demonstração de falta de conhecimento. Muitos autores consagrados, incluindo best-sellers, começaram com fanfics. Usar fics como sinônimo de algo ruim só mostra que a pessoa não entende nada de produção literária”. Ainda, ela destaca que esse novo tipo de produção toma como base uma criação já estabelecida.

Toda a saga de Percy Jackson é uma grande fanfic da mitologia grega! E eu poderia citar muitos outros exemplos. Isso não faz a saga ter mais ou menos qualidade, porque não é o gênero literário que importa, é a narrativa conduzida pelo escritor”, a jornalista declara.

E, nos últimos anos, algumas histórias surgidas no mundo das fanfics ganharam tanta fama a ponto de se tornarem fenômenos por si só, tornando-se não somente best-sellers, mas, também, sucessos do audiovisual com adaptações cinematográficas. Alguns exemplos disso são:

  • Trilogia Cinquenta Tons: sob o nome de “Masters of the Universe”, a história de E.L. James era, originalmente, uma fanfic de “Crepúsculo”. Com o pseudônimo Snowqueens Icedragon, a autora começou a publicar em plataformas virtuais que alçaram a narrativa erótica ao status de fenômeno mundial. 
  • After: escrita por Anna Todd, a história original nasceu no Wattpad, em 2013, quando a autora, fã da boy band One Direction, decidiu escrever um romance baseado no cantor Harry Styles, integrante da banda à época. 
  • Através da Minha Janela: não tão famosa quanto as mencionadas anteriormente, a história criada por Ariana Godoy iniciou sua jornada no Wattpad até ser adquirida por uma casa editorial em 2019 e adaptada pela Netflix em 2022.

Portanto, é possível perceber que o Wattpad deixou de ser apenas uma plataforma de histórias criadas por fãs e se transformou em impulsionador para escritores contemporâneos. Entre eles, autores brasileiros como Clara Savelli, Clara Alves, Felipe Sali, Lilian Carmine, que começaram no universo das fanfics virtuais e foram publicados por grandes editoras.

Ou seja, essas plataformas são uma maneira de os ficwriters publicarem seus livros de forma independente, ganharem reconhecimento pelo que escrevem e conquistarem os leitores, além de usar essa produção como treinamento, para melhorar as habilidades textuais.

“Os leitores de fanfics são os mais abertos ao novo, eles estão apenas procurando boas histórias. São o melhor tipo de público, especialmente para escritores iniciantes que ainda estão descobrindo seu próprio estilo de escrita”, comenta Isa Feijó.

No entanto, esse processo de publicação de fanfics está longe de ser perfeito, em especial no que diz respeito às próprias plataformas. Os ficwriters não são recebem qualquer tipo de remuneração para publicar suas histórias, a menos que, por exemplo, paguem uma taxa ao Wattpad para que suas narrativas sejam categorizadas como “Leituras Pagas”.

Além disso, existem várias críticas feitas pelos escritores sobre o suporte oferecido pela plataforma, que, segundo apontam usuários, não segue as próprias diretrizes, acarretando prejuízos aos autores, especialmente em casos de plágio e remoção de histórias e perfis sem uma justificativa clara. Tais problemas têm causado insegurança entre os ficwriters.

Enquanto isso, o mercado editorial brasileiro, vivendo um momento de transformação, vem acolhendo – mesmo em pequena escala – os autores de fanfics, em especial nas editoras independentes, as quais ganham mais visibilidade a cada dia.

E muitas dessas empresas menores, como as editoras Violeta, Euphoria e Calíope, estão surgindo na tentativa de evitar antigos percalços do mercado literário. “Não foi realmente uma escolha, porque eu fugi o máximo que pude. Mas tive uma experiência horrível com uma editora e várias pessoas ao meu redor também”, explica Isa Feijó, CEO da Calíope.

A Editora Calíope busca dar oportunidade a novos escritores (Foto: Reprodução/Twitter)

Essas editoras independentes foram criadas por escritores de fanfics que tinham o desejo de publicar seus trabalhos e expandir tal universo, ultrapassando a seara das narrativas de fãs ao trabalhar, também, com jovens autores nacionais que sonham em ter suas histórias publicadas – tanto em formato físico como em e-books -, o que atrai o público leitor ávido por acompanhar a evolução dos autores. “Queremos dar a oportunidade a muitos escritores incríveis que ainda não tiveram o reconhecimento que merecem”, Isa Feijó esclarece.

A escritora Morgan Miller, recentemente publicado pela Calíope, é a prova de que é possível que os criadores de fanfics cheguem às editoras. A autora começou em 2021, no Wattpad, escrevendo histórias baseadas nos personagens de “Harry Potter” e ganhou muita visibilidade na plataforma. Agora ela já está no terceiro volume de sua trilogia, iniciada pelo título “In a Black Suit: O Contrato”.

Morgan ainda é uma autora pequena, mas seu caso mostra que os ficwriters podem ser reconhecidos fora do mundo virtual. “Escrever fanfics foi uma forma de me encontrar no mundo da escrita. Sempre sonhei em ser autora, mas decidi começar com fanfics; foi assim que criei o meu caminho. Aos poucos, amadureci minha escrita e estudei muito antes de escrever um livro. Nesse tempo, ganhei visibilidade. Para mim, foi a melhor maneira de começar”, a escritora avalia.

Com isso, essas editoras independentes vêm conseguindo atingir seu objetivo de não somente inserir escritores no mundo da literatura, mas apresentar novos nomes ao público, o que traz visibilidade para essas produções e mostra que obras criadas por fãs também fazem parte da literatura contemporânea.  

Foto de capa: Reprodução/Pexels

Reportagem de Kauane Nery, com edição de texto de Daniel Deroza

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4 comentários em “Fanfics abrem portas para escritores na literatura brasileira

  1. Ane nascimento

    Você vai ser uma jornalista incrível. Amei a matéria parabéns.

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