Da sala de aula

Cinemas de rua do Rio de Janeiro tentam sobreviver às permanentes ameaças de fechamento

Cineastas, estudantes e espectadores lamentam encerramento de salas que não resistiram ao período de isolamento imposto pela Covid-19

por Ana Paula Machado

Do auge glorioso à dura sobrevivência — passando por momentos como a substituição pelos cinemas de shoppings, o encerramento de muitas salas e o fechamento temporário forçado pela pandemia da Covid-19 — a história do cinema de rua no Rio de Janeiro daria um filme. Um roteiro que mistura drama, resistência, saudosismo e paixão. O cinema de rua, que continua a atrair um público fiel, criou um legado indiscutível para a sociedade, se tornou muito importante para os bairros onde estas salas existem e resistem e são fundamentais para espectadores, estudantes de audiovisual e cineastas, que dependem desses espaços.

Uma volta ao passado permite vislumbrar a importância do cinema de rua para o Rio. No seu apogeu, foram inauguradas salas como o Cine Parisiense, em 1907, primeiro cinema estável do estado. Já em 1928, era aberto o Cine Palácio, onde aconteceu a primeira exposição de filmes sonorizados. Conforme o cinema ganhava destaque no mercado, mais salas eram abertas, como o Cine Odeon, em 1926, o Cine Vitória, em 1942, entre outros. Porém, nos anos 70 e 80, tudo começou a mudar. Os cinemas começaram a migrar para os shoppings centers, fazendo com que que as salas de exibição de rua diminuíssem cada vez mais. 

Em 2019, os cinemas de rua que sobravam no Rio Janeiro eram o Cine Odeon, Estação Net Rio Gávea, Estação Net Rio Botafogo, Roxy, Espaço Itaú de Cinema, entre outros. Já em 2020, o mundo passou por um período trágico com o aparecimento da Covid-19 e, assim como outros espaços, eles foram fechados, pois as pessoas não poderiam ficar em lugares abafados. Em 2021, o estado decretou a volta dos cinemas e alguns não conseguiram voltar, como o Odeon, que existia desde 1926, e o Roxy. O Estação Net Rio de Botafogo, que foi quase fechado depois de sua abertura, o Estação Net Rio da Gávea e o Espaço Itaú de Cinema foram alguns dos que reabriram.

Entrada da Estação Net Rio de Botafogo
 (Foto: Ana Paula Machado)

Os cinemas de rua que restaram são importantes por vários motivos. O primeiro a ser destacado é a familiarização que as pessoas podem ter com ambiente, já que é pequeno e acolhedor para quem ama a história do cinema. São ótimos espaços para que os espectadores apaixonados por esse universo possam fazer amigos novos, que gostam de debater sobre os mesmos assuntos e sair com colegas já conhecidos que também adoram esse mundo.

Lucas Gabriel tem 20 anos, fez curso de Cinema no Instituto de Cinema, na Academia Internacional de Cinema e no Espaço Primavera, frequenta as salas de rua desde 2018 e o primeiro filme visto em um cinema de rua foi “Trama Fantasma”. A história desse telespectador ilustra muito bem a paixão por estes espaços: “Quando eu penso em sair para algum lugar com meus amigos, os cinemas de rua sempre são a primeira opção, por conta de toda a atmosfera desses locais”.

Já para os estudantes de Cinema, esse local pode criar oportunidades de trabalho, porque nele acontecem muitos encontros e festivais que aproximam quem os frequenta. Rayra Lucas fez curso de Cinema na Academia Internacional de Cinema, frequenta o cinema de rua desde 2018 e o primeiro filme visto em um espaço assim foi “Lady Bird”. “O cinema de rua é um lugar de troca, e com os encontros que o ambiente promove, você pode criar contatos importantes sendo um estudante, conhecendo atores e diretores diversos. Essa promoção cultural acontece graças ao cinema de rua”, diz a estudante. 

Rayra Lucas estuda audiovisual na Academia Internacional de Cinema
(Foto: Acervo Pessoal)

Os festivais que acontecem no cinema de rua são, de fato, importantes, porque além de promoverem interações, os cineastas e estudantes têm a possibilidade de inscrever suas obras para serem exibidas no local. O Festival de Cinema do Rio, por exemplo, acontecia no Odeon, mas por causa de seu fechamento, agora ocorre na Estação Net Rio. Lucas, que é apaixonado por cinema, já frequentou esse festival e conta um pouco da sua experiência: “No ano passado, em 2021, tive o prazer de assistir “Belfast” antes de sua estreia no Festival do Rio. Havia uma infinidade de sessões de filmes fascinantes e acesso a sessões exclusivas que, aliás, muitas vezes, eram seguidas de debates com o elenco e a equipe, como no caso de “Medusa”, um filme brasileiro que foi exibido”.

Com esses festivais, o cinema de rua também tem a oportunidade de disponibilizar uma variedade de obras de países diferentes. Já nos cinemas de shoppings, costumam passar apenas blockbusters e filmes norte-americanos. Para quem é estudante de Cinema, é importante ter acesso a esse estilo de arte, porque é preciso conhecer diversas formas de fazer filmes para utilizar essas referências em suas obras. Esse é o caso de Rayra e Lucas, que estão na pós-produção do curta feito por eles, chamado “O Beijo”, no qual utilizaram referências estrangeiras. “É essencial ter a visão do outro para construir sua própria noção de mundo, e é dessa forma que eu quero  criar meus filmes, pegando referências e trazendo isso para a minha realidade brasileira”, destaca Rayra.

“Paradise- Uma Nova Vida” é um filme italiano que estreia no Espaço Itaú de Cinema em breve
(Foto: Ana Paula Machado)

Como o cinema de rua exibe muitos filmes estrangeiros, é comum a chegada daqueles que concorrem ao Oscar. Assim, quem ama o cinema e a premiação pode assistir a essas obras no local, porque, na maioria das vezes, não são exibidos em outros lugares. Sandra Maya tem 62 anos, e atualmente trabalha dentro do Espaço Cavídeo, um local que vende DVDs e livros dentro da Estação Net Rio. Ela já fez parte de diversas produções de filmes e acompanha o Oscar desde os  6 anos: “Sempre tive todas as premiações do Oscar gravadas para rever depois, e os cinemas de rua me deram a oportunidade de ver os filmes da premiação no cinema, já que não passavam em outros lugares”. 

 

O Espaço Cavídeo na Estação Net Rio
(Foto: Ana Paula Machado)

No Espaço Itaú de Cinema há um local parecido com o da Estação Net Rio, que vende DVDs e livros. Os dois são importantes porque têm um preço mais acessível e ajudam quem é estudante de Cinema, pois há DVDs com making ofs, que são materiais de bastidores difíceis de encontrar. Rayra, que é colecionadora de DVDs, é um exemplo: “Se eu vejo um filme de 80 reais com making of, vale a pena comprar, porque essas informações são muito importantes e me agregam como estudante. Tive que fazer uma resenha de um filme no curso de Cinema e só consegui porque assistir ao making of dele em um DVD”.

Local que vende DVDs e livros dentro do Espaço Itaú Cinema
(Foto: Ana Paula Machado)

Do mesmo modo, com o aparecimento do streaming, também ficou fácil ter acesso aos filmes, porém não são todos que estão disponíveis. Lucas, que tem mais de 300 DVDs, afirma: “Além dos DVDs serem itens de coleção, servem como recurso quando não encontro certos filmes em nenhuma plataforma. É o caso dos filmes ‘Beleza Roubada’, ‘Dogville’ e ‘Amor à Queima Roupa’. Todos são obras únicas que me inspiram muito quando penso em fazer cinema”.

Lucas e Rayra com os DVDs que compram nas lojas dos cinemas de rua
(Foto: Acervo Pessoal)

Também é necessário destacar que a filmografia brasileira é bem diversa, porém, nos cinemas de shoppings, os filmes nacionais transmitidos são limitados, porque o gênero nacional mais exibido é a comédia. Já nos cinemas de rua, são distribuídos todos os tipos de filmes nacionais. A estudante Rayra ressalta: “O cinema de rua levanta a bandeira de que o Brasil produz outros gêneros”. Além disso, o cinema de rua é importante para os cineastas brasileiros porque eles têm a oportunidade de colocar suas obras no local. Já nos cinemas de shopping, o costume é a exibição majoritária de blockbusters, termo que designa grandes produções hollywoodianas cujo maior foco, além do entretenimento, é o alcance.

Cavi Borges é a prova disso. Ele tem 46 anos, é um cineasta e produtor, dirigiu mais de 14 longas-metragens e produziu mais de 150 filmes. Também tem obras premiadas e exibidas em festivais famosos, como Festival de Cinema de Cannes, Mostra de Tiradentes, entre outros. Além disso, tem uma locadora em Laranjeiras, abriu o Espaço Cavídeo e já disponibilizou seus curtas em cinemas de rua.

“Eu e vários cineastas só conseguimos exibir nossos filmes no cinema de rua porque são os únicos lugares que abrem as portas. Esse ambiente é um local fundamental para a nova geração de profissionais da área”, observa Cavi.

Rayra também tem um grande sonho de colocar um de seus projetos em locais do tipo: “Minha maior meta é estrear filmes em um cinema de rua. Tenho o sonho de fazer isso em um lugar que eu acho tão importante”. 

“Papai é Pop” é o novo filme brasileiro estrelado por Lázaro Ramos e Paolla Oliveira, que estreia em breve no Espaço Itaú de Cinema
(Foto: Ana Paula Machado)

Além de ser importante para os cineastas, o cinema de rua faz parte da vida e da história do bairro em que está instalado. As pessoas estabelecem um maior envolvimento com o espaço, mas também criam uma ligação com o pipoqueiro, com o bilheteiro e com os funcionários. Ainda por cima, o ambiente abriga uma questão tradicional e histórica, tem um clima romântico, nostálgico e de acolhimento. No shopping já não é possível ter esse encanto, porque as pessoas não vão somente para o cinema e acabam perdendo o clima do lugar. Cavi comenta: “Quando você passa pelo cinema de rua de carro, a pé e de ônibus, olha para o letreiro e descobre qual filme está em cartaz, lembrando momentos clássicos e nostálgicos, ao contrário dos shoppings”. 

Cavi Borges no Espaço Cavídeo, ambiente que criou dentro da Estação Net Rio
(Foto: Ana Paula Machado)

O custo do cinema de rua é outro atrativo, pois é bem acessível por causa das diversas promoções. Com isso, dá a oportunidade de acesso às pessoas de baixa renda e facilita a ida de todos. Sandra lembra: “No shopping, além do ingresso do cinema, você paga o estacionamento e um combo de pipoca bem caro. Já o cinema de rua facilita a sua diversão, porque é de fácil acesso, tem um menor custo e disponibiliza uma variedade de obras”.

Sandra Maya no Espaço Cavídeo, local de trabalho
(Foto: Ana Paula Machado)

Por todos esses motivos, o cinema de rua é fundamental para a cultura, e a sociedade deve se esforçar para conhecer esse ambiente. Sandra resume: “Quando as pessoas saem de um cinema de rua com a cabeça flutuando porque viram um romance, quando veem um filme de guerra e entendem que o terror não é o Frankenstein, e quando uma mãe e um filho saem pulando de alegria porque assistiram a uma animação, você entende por que o cinema de rua deveria continuar existindo. As reações das pessoas quando vão embora do local dizem para você o que faz um cinema de rua”.

Entrada do Espaço Itaú de Cinema, em Botafogo
(Foto: Ana Paula Machado)

Reportagem realizada por Ana Paula Machado para a disciplina Apuração, Pesquisa e Checagem, ministrada pela professora Maristela Fittipaldi

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