As equipes brasileiras de tecnologia não refletem a diversidade racial, de gênero e econômica que o país apresenta. É o que indica a pesquisa Quem Coda o Brasil? realizada pela PretaLab, iniciativa lançada em 2017 que visa incluir mulheres negras no campo tecnológico (unida a ThoughtWorks, consultoria global de software). O estudo, divulgado no final de agosto deste ano, aponta que a área de tecnologia é composta, majoritariamente, por homens brancos de condição socioeconômica média e alta. Apesar de pessoas negras e pardas serem mais da metade da população, correspondendo a 54% dos cidadãos brasileiros, apenas 36,9% dos funcionários consultados se consideram deste grupo.
O mercado de trabalho não se relaciona com os números que predominam na sociedade brasileira. Mais da metade da população do Brasil é formada por mulheres, dentre as quais 27% são negras, segundo o IBGE. Entretanto, durante a confecção da pesquisa, os entrevistados informaram que não há nenhuma pessoa negra em 32,7% das equipes que trabalham com tecnologia no país, e em 21% dos casos não há nenhuma mulher. Além disso, a situação financeira dos profissionais inseridos neste mercado também não é proporcional à realidade da maioria dos brasileiros, já que mais de 60% apresenta renda mensal domiciliar a partir de 5 salários mínimos, o que corresponde a R$ 4.770,00, de acordo com o valor de 2019.
Para a coordenadora do estudo Quem Coda o Brasil?, Silvana Bahia, a homogeneidade verificada entre os funcionários das empresas de tecnologia do país é uma questão histórica. “O Brasil tem muitos problemas e todos eles começam pela questão racial. Olhar para as equipes de tecnologia e ver que não há diversidade é um reflexo das políticas desiguais da história do país”, declara. Silvana, que é jornalista e mestre em Cultura e Territorialidade, ainda sugere que, além de fazer com que esse público tenha acesso à empregabilidade, é necessário criar maneiras para que ele permaneça atuando em sua área.
“As mulheres negras são as que menos tem bons empregos e bons salários. Deveriam ser criadas não só políticas de inclusão, mas também formas de mantê-las no mercado”, afirma.
Ter o conhecimento sobre a disparidade que se manifesta neste cenário é fundamental para a compreensão da pluralidade que o Brasil comporta. “Uma iniciativa importante é a criação de pesquisas, porque a gente só entende que existe um problema e como podemos solucioná-lo quando entendemos que ele existe e temos dados sobre isso”, destaca Silvana, que também é diretora de projetos do Olabi, organização social com foco em tecnologia, inovação e diversidade, por onde coordena a PretaLab.
“Observamos que esse era um lugar de poder, e sabemos muito bem onde estão os nossos espaços e onde a gente quer chegar. A PretaLab vem para ser essa causa, que visa discutir a falta de representação e proporcionalidade de mulheres negras nesse campo”, explica.

(Foto: Divulgação/Safira Moreira)
Iniciativas que voltam seus esforços para integrar o público feminino ao mercado de trabalho, de fato, ainda são necessárias. Um dos destaques do estudo Education at Glance, divulgado em setembro de 2019, pela OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), retrata que, embora mulheres brasileiras tenham 34% mais chances de se formar no ensino superior do que os homens, elas têm menos possibilidades de conseguir emprego. No Brasil, o mercado de tecnologia terá a demanda de aproximadamente 420 mil profissionais até 2024, de acordo com a Associação Brasileira de Startups (Abstartups).
Em meio a esta situação, a PretaLab criou uma ferramenta digital com o intuito de tornar o mercado de tecnologia mais democrático, unindo profissionais negras a empresas que procuram por mão de obra qualificada para preencher suas vagas. “Lançamos essa plataforma, em 2019, para reunir esses perfis de mulheres negras porque queremos resolver esse índice horrível do grupo em relação à empregabilidade. A tecnologia é um mercado possível para essas mulheres, o que nós queremos é que as mulheres negras olhem para isso como uma oportunidade”, afirma Silvana.
A coordenadora da PretaLab ainda informa que a plataforma tem um outro objetivo. “Queremos dar uma resposta para esse mercado de trabalho que sempre diz que não encontra mulheres negras qualificadas para essa área. É preciso um exercício de querer romper as bolhas e entender que diversidade não é uma questão paternalista ou assistencialista, mas sim, uma questão econômica, de compromisso social com o país e com as futuras gerações. Criamos uma plataforma de conexão entre nós, o mercado de trabalho e uma resposta para esse mundo que diz que a gente não existe”, ressalta.
Conseguir visibilidade foi exatamente o que levou a cientista de dados, Juliana Marques, a realizar seu cadastro. “Eu me coloquei ali na plataforma primeiramente para mostrar que eu existo, sou cientista de dados e mulher negra e ‘estou aqui’. Mas também para encontrar outras mulheres e tê-las no radar para futuras conexões. Entendo que o número de mulheres negras nesse ramo é muito reduzido e a plataforma é uma possibilidade de darmos visibilidade para as poucas que existem. A partir desta experiência, eu já estive em contato com outras mulheres que desenvolvem trabalhos muito interessantes em áreas diferentes da que eu atuo, mas que de alguma maneira contribuíram para o trabalho que eu desenvolvo hoje. Consegui expandir meu conhecimento a partir dessas conexões”, relata Juliana.
A profissional, que atualmente trabalha com estatística no DataLabe, laboratório de dados e narrativas da comunidade da Maré, no Rio de Janeiro, revela que durante sua trajetória profissional já vivenciou situações que precisou reafirmar sua capacidade e teve que lidar com uma grande exigência devido ao seu perfil social. “Ser mulher negra e estar ocupando esses espaços resulta numa carga de cobrança individual em um nível que realmente é completamente diferente das outras pessoas que normalmente ocupam essa área”, desabafa.
Além da questão da pressão que sente, Juliana ainda comenta que os baixos salários estão entre as dificuldades para se manter na carreira. “Eu decidi que, em alguns momentos, valia receber uma remuneração menor e estar ali aprendendo coisas que no futuro poderiam me possibilitar estar em uma posição melhor. Isso é complexo porque você sabe da sua capacidade, mas não consegue um emprego que te reconheça”, conta.
Ainda que existam tantas barreiras para as profissionais, pode haver a possibilidade de que futuramente esse quadro se reverta e que o mercado de trabalho atribua mais reconhecimento a este público que é desvalorizado. Isso porque um estudo da consultoria McKinsey and Co evidencia que as empresas com times de executivos que apresentam maior diversidade cultural e de gênero são mais lucrativas. O resultado foi obtido a partir da análise de cerca de mil empresas globais em doze países. Constata-se que as companhias com maior diversidade de gênero têm 21% mais chances de apresentar resultados acima da média do mercado, enquanto as empresas que têm mais diversidade cultural e étnica podem obter 33% mais chances de lucros maiores.
“Não estamos falando de facilitar o acesso a pessoas que não tem capacidade para desenvolver o trabalho, mas sim de dar oportunidade para pessoas que já tenham uma qualificação igual ou melhor do que outras que estão no setor, o que significa um melhor rendimento para as companhias. O ideal seria não ter que ficar insistentemente falando sobre isso e que essa questão fosse superada”, conclui Juliana.
Assista a videorreportagem sobre a criação da ferramenta digital da PretaLab:
Júlia Reis (6° período)
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