Ao anúncio de uma nova adaptação de algum clássico da literatura universal, é normal que se pergunte “ainda é possível extrair algo dessa história?”; ainda mais em uma época em que remakes, reboots e reimaginações se proliferam como gremlins — seja por crise de criatividade, excesso de nostalgia ou porque estadunidenses têm preguiça de ler legendas. No entanto, o fator mais importante para a análise desse cenário costuma ser esquecido ao questionar a necessidade de uma reimaginação: há um motivo para clássicos serem clássicos.
E esse é o caso do magnum opus de Alexandre Dumas (pai), “Os Três Mosqueteiros”, o qual, após um sem-número de encarnações nos mais variados formatos — de romances-derivados a filmes, passando por teatro e quadrinhos — inicia mais uma temporada nos cinemas, e, surpreendentemente, consegue inovar no desenvolvimento de uma das narrativas mais famosas da História devido a uma série de acertos.
O enredo, claro, já é velho conhecido do público. O jovem gascão D’Artagnan (um exímio espadachim e, aqui, o centro da narrativa) ruma a Paris com planos de integrar a elite dos guardas reais, ou seja, tornar-se um mosqueteiro. Ao chegar à cidade, em uma sucessão de encontros e acidentes desajeitados, o rapaz entra em atrito com Athos, Porthos e Aramis — trio que dá título à obra —, sendo desafiado para duelos, proibidos por lei.

Percebida a coincidência, os quatro são flagrados pelos subordinados do Cardeal de Richelieu, braço-direito do rei Louis XIII. A partir desse episódio, surgem no grupo laços de amizade e cumplicidade, especialmente quando um deles é acusado de homicídio, sendo o primeiro alvo de uma grande conspiração cujo objetivo é atingir o monarca e a rainha Anne. Com isso, os outros três iniciam uma corrida contra o tempo para provar a inocência do amigo e salvá-lo da execução.
Quem já está familiarizado à história original, percebe logo o primeiro diferencial benéfico ao filme: a decisão do realizador francês Martin Bourboulon de dividir a trama em dois longas — escolha anunciada logo após a sequência de abertura, quando o complemento “Parte I” surge na tela — gravados como um único projeto.
Além disso, a produção é muito eficaz na imersão dos espectadores; o arco inicial focado na chegada de D’artagnan a Paris e a aproximação dos quatro protagonistas já estabelece não apenas o tom da história — muito mais sóbrio que a maioria das adaptações desta narrativa para o cinema —, mas, também, o nível de fidelidade à fonte.
Isso porque, desde o surgimento de obras derivadas de “Os Três Mosqueteiros”, ainda no século XIX, convencionou-se, de certa forma, que o romance de capa-e-espada do escritor francês é melhor aproveitado sobre as bases de uma aventura cômica, diminuindo o teor das intrigas políticas e críticas sociais presentes no livro — não à toa, figuras históricas reais estão presentes no enredo.

Portanto, o enfoque apenas na primeira metade do livro-base serve tanto ao estabelecimento da atmosfera quanto ao ritmo do filme, bem mais cadenciado que o habitual em versões cinematográficas da obra de Dumas. Aqui, há tempo para apresentar personagens e tramas com calma, desenvolvendo esses pontos de forma a envolver o público. Isso leva a outro ponto positivo.
Como não há, aqui, necessidade de apressar os acontecimentos, o guião de Alexandre de la Patellière e Matthieu Delaporte se adensa gradativamente de modo que cada nova expansão do enredo funciona como um pequeno cliffhanger para prender a atenção dos espectadores — diferente do esperado em roteiros plot driven, em que os protagonistas precisam, simplesmente, ir de A até B.
Aliás, esse não é o único elemento típico da televisão utilizado pela produção. Ao longo do segundo ato, quando os três heróis em liberdade tentam encontrar provas da inocência do mosqueteiro preso injustamente, o filme assume algumas peculiaridades das séries procedurais de investigação — com procura por pistas, discretos interrogatórios e análise do corpo da vítima —, o que confere certo frescor à narrativa clássica.

Ainda, essa opção por parcimônia e sobriedade oportunizou um design de produção mais realista, o qual busca representar de maneira mais factual a França da primeira metade do século XVII — embora o folhetim tenha sido publicado inicialmente em 1844, a trama se desenrola por volta de 1627. Com isso, as personagens que não pertencem à nobreza estão sempre sujas, assim como a própria cidade; o figurino, surrado, também ajuda a evidenciar a falta de condições de higiene em que a maioria da população vivia à época.
Isso diferencia este novo longa dos seus antecessores ao redor do mundo — em particular, os hollywoodianos mais old school, nos quais cenários, roupas e maquiagens estavam sempre impecáveis e limpos, somados a matizes saturados, trazendo uma nota de fantasia àquelas produções estreladas por atores que não saíam da pose de galã, um padrão do período.
Dessa maneira, a nova abordagem entra em harmonia com a cinematografia de Nicolas Bolduc, a qual, além de recorrer a uma paleta terrosa — por vezes, pálida — ao dourado, transitando entre a modéstia e a suntuosidade, usa planos mais fechados nos momentos de intensidade, artifício que coloca o espectador dentro da ação — muito bem dirigida — junto com as personagens.

Ademais, a bela trilha incidental, embora não seja inovadora, mostra-se eficaz nos instantes de tensão dramática e não é invasiva — esse último ponto, oposto à tendência cinematográfica atual não muito benquista pela audiência. E todo esse aspecto contido se reflete nas atuações — todas certeiras. Obviamente, o destaque é o D’Artagnan vivaz do astro francês François Civil, que personifica tanto o lado heróico da personagem, quanto seu humor rápido e sagaz. Mas há outras performances de igual notoriedade.
O primeiro deles é o aclamado Vincent Cassel na pele do atormentado Athos, o mais velho do grupo e — a certa altura — muito próximo à figura de um mentor. Os outros dois mosqueteiros também não ficam para trás. Romain Duris, defensor do ácido Aramis, e Pio Marmaï como o luxurioso Porthos têm seus momentos de brilho, em especial no segundo ato, quando o ainda cadete D’Artagnan se une ao grupo. Outro ponto alto do elenco é a atriz luxemburguesa Vicky Krieps, que interpreta a rainha Anne com dignidade e benevolência de uma nobreza idealizada.
E há, claro, o rei de Louis Garrel, o qual surge em tela completamente desprendido da imagem de um dos maiores galãs do cinema francês ao encarnar o inseguro e manipulável monarca evitando cair na tradicional armadilha dessa personagem: a caricatura. Historicamente, é comum as interpretações do Louis XIII de “Os Três Mosqueteiros” tenderem ao exagero de uma persona infantil e mimada com trejeitos efeminados — em geral, para fins humorísticos. Aqui, Garrel vai na direção oposta sem perder as deixas cômicas — agora, muito mais sutis —, um equilíbrio difícil de encontrar.

Também se beneficia do minimalismo Éric Ruf, que, ao assumir o Cardeal de Richelieu — um dos grandes vilões da literatura —, não adota o maniqueísmo cheio de caretas e sobrancelhas erguidas, maneirismos marcados nessa personagem nas adaptações cinematográficas. No entanto, a divisão da trama em duas partes tira um pouco do tempo de tela do ator no primeiro volume, fazendo desse antagonista oculto uma sombra pairando sobre o enredo — provavelmente o traidor do reino terá maior relevância na continuação.
Outra pessoa atingida por decisões criativas é Eva Green, pois sua Milady de Winter — uma das precursoras do arquétipo da femme fatale contemporânea — desempenha um papel muito mais funcional na história, aparecendo em momentos-chave como uma ameaça iminente, a qual se concretizará na sequência — justamente, nomeada “Os Três Mosqueteiros – Milady”. Além disso, a atriz não se afasta muito da famosa persona sombria e sedutora de seus trabalhos mais conhecidos, diferenciando-se da aura angelical de outras encarnações da vilã; por outro lado, Eva está magnética como sempre, afinal, trata-se de um tropo que a estrela francesa sabe administrar muito bem.
Mas, apesar de a bipartição do enredo de Dumas diminuir um pouco a circulação dos antagonistas, isso não chega a ser um problema, pois a vilania deles não é anulada — os perpetradores não passam despercebidos e são, de fato, ameaçadores.

Aliás, é necessário pontuar que, apesar da fidelidade à base literária, há divergências em relação ao material-fonte, desde acréscimo ou destaque de traços de identidade até eliminação de algumas personagens menores do livro — como o senhorio de D’Artagnan, o burguês Bornacieux; aqui, apenas sua esposa, a doce Constance, está presente em uma interpretação aprazível da franco-argelina Lyna Khoudri. Assim, pode-se dizer que as poucas alterações necessárias a uma adaptação contribuem para o andamento do filme e não revoltam os fãs da obra original.
Em suma, a primeira parte da nova aventura dos três mosqueteiros — que, na verdade, são quatro —, nos cinemas é uma produção primorosa cujas principais preocupações neste retorno à língua-mãe de seu criador são o respeito à obra de origem e a inovação na abordagem do enredo clássico já narrado de incontáveis formas ao longo de quase dois séculos, conseguindo, assim, agradar novos públicos e admiradores fervorosos da criação mais popular de Alexandre Dumas.
Por fim, a soma de ambas as características, amarrada por um vigoroso gancho, confere ao projeto os ares daquelas irresistíveis microsséries europeias em dois episódios — estando, talvez, nesse aspecto e no fato de não precisar condensar todo o romance em duas horas de projeção, o principal trunfo do filme. E, a quem gostar da empreitada, resta aguardar o lançamento do segundo volume, “Os Três Mosqueteiros – Milady”, com previsão de estreia no Brasil para 14 de dezembro de 2023.
Confira abaixo o trailer oficial de “Os Três Mosqueteiros – D’Artagnan”:
FIcha técnica – “Os Três Mosqueteiros – D’Artagnan”
Direção: Martin Bourboulon
Roteiro: Alexandre de la Patellière e Matthieu Delaporte
Gênero: Aventura/Histórico
Ano: 2023
Foto de Capa: Reprodução/Paris Filmes
Crítica por Daniel Deroza, com edição de texto de João Pedro Agner
LEIA TAMBÉM: ‘A Porta ao Lado’ questiona os limites da liberdade em um relacionamento
LEIA TAMBÉM: Rio2C: “a nostalgia é uma caixa de primeiros socorros emocional”
Pingback: Roteiro pelo Centro do Rio para curtir o feriado | Agência UVA
Pingback: “Duna: Parte 2” é um dos destaques da CinemaCon | Agência UVA