Sociedade

“A Luta Antimanicomial pretende reconstruir as relações entre a sociedade e a loucura”

Doutora em Psicanálise e Saúde e professora da Universidade Veiga de Almeida, Aline Drummond fala sobre a necessidade de uma mudança de paradigma em relação ao louco

A psicanalista e Doutora em Psicanálise, Saúde e Sociedade, Aline Drummond, professora da Universidade Veiga de Almeida (UVA), é taxativa: “a reforma psiquiátrica veio, mas precisamos acabar com a mentalidade manicomial que ainda existe em nossa sociedade. E este é um trabalho coletivo, de todos nós”.

Aline lidera, ao lado de professores e alunos, a organização do movimento “Luta Antimanicomial” que acontece na universidade há 18 anos e falou com exclusividade à Agência UVA sobre um tema ainda pouco abordado na mídia comercial.

“A Luta é um movimento tão necessário quanto os movimentos negro, LGBTQIA+, a luta contra o sexismo, e a de pessoas com deficiência. Os loucos e em sofrimento psíquico são uma parcela da população que não pode ser encarcerada. Não é a solução”, diz.

Para ela, a mentalidade manicomial existe ainda, apesar de a maioria dos manicômios e hospitais psiquiátricos terem fechado a partir de 2001 (em contrapartida ao fechamento, foram criados Centros de Atenção Psicossocial (CAPs) em todo o país, para acolhimento de pacientes com transtornos mentais, em tratamento não-hospitalar). “A função dos CAPs é prestar assistência psicológica e médica, visando a reintegração dos doentes à sociedade”, explica. 

Confira os melhores trechos da conversa com a psicanalista:

Agência UVA: A Luta na UVA existe há 18 anos. Como você percebe a evolução do movimento dentro da universidade e também na sociedade?
Aline Drummond: A Luta Antimanicomial na UVA convida à reflexão e ao debate de duas dimensões muito importantes no campo da saúde mental: a dimensão sociocultural e a dimensão clínica. Ambas de igual importância e que não estão em oposição, ao contrário, são complementares e estão enlaçadas. A dimensão sociocultural da Luta Antimanicomial visa a produção de um novo lugar social para a loucura e o sofrimento mental. Para tal, urge transformar as concepções sociais, culturais, cientificas, jurídicas-políticas que foram construídas na sociedade, pela própria instituição psiquiátrica a partir das práticas e da associação da doença mental. São práticas de alienação, de irresponsabilidade, de insanidade, de incapacidade, de periculosidade e de desrazão. Assim o louco é visto em nosso tecido social.

Agência UVA: É urgente, portanto, transformar de maneira global este pensamento.
AD: Exato. Urge, transformar o imaginário social, as representações sociais, transformar as práticas discursivas da sociedade sobre a loucura que ainda permanecem atualmente. Nesse sentido, o objetivo da Luta Antimanicomial é reconstruir as relações entre a sociedade e a loucura, reconstruir as relações entre a sociedade e as pessoas em condições de diversidade. Construir um outro lugar social para o louco e a loucura, para a diversidade, para a diferença. A Luta Antimanicomial, na sua dimensão sociocultural, visa transformar a forma como a sociedade lida com tais questões.

A Luta Antimanicomial é radicalmente contra a existência de manicômios e hospitais psiquiátricos para internações. Foto: Tati Beling/Wikimedia Commons


Agência UVA: E como fazemos esta mudança?
AD: Temos aí a arte e a cultura como estratégias de mediação e diálogo entre a sociedade e a loucura, como transformação de cultura, e de produção de novos lugares sociais. Esse duo, arte-cultura, são estratégias de produção e invenção de vida, e produção de novas subjetividades. O uso da arte-cultura como recurso de tratamento do imaginário social, da representação da loucura e da invenção de um novo lugar na sociedade para o louco é uma possível direção de mudança. O uso da arte como invenção, solução, reconstrução do mundo subjetivo depois da catastrófica e dolorosa experiência do desencadeamento da loucura.

Agência UVA: E no âmbito clínico, ou seja, no consultório desta pessoa com seu psicólogo ou psicanalista, como pode ser feito o trabalho?
AD:
Na dimensão clínica, o que nos interessa apreender é o movimento que o sujeito, o usuário do serviço substitutivo (a clínica), pode tecer como solução a partir de sua condição de sofrimento. A atual política de saúde mental oferta uma rede diversificada e complexa de ações e serviços. E em vários destes serviços, podemos encontrar a utilização de atividades e expressões artísticas como importante ferramenta de intervenção terapêutica e de produção de cuidado. Geralmente estas atividades são desenvolvidas em oficinas terapêuticas que são espaços encontrados em todos os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e fazem parte do rol de ofertas de tratamento no cotidiano destes serviços.

Para Aline Drummond, a arte é uma aliada como recurso terapêutico para pessoas com sofrimento psíquico. (Foto: Acervo pessoal)

Agência UVA: Apesar dos avanços, especialmente após a lei promulgada pelo então Presidente Fernando Henrique, a chamada Lei de Reforma Psiquiátrica, percebemos retrocessos, especialmente recentemente, em que houve alteração e destituição de serviços e programas atendendo usuários de saúde mental no Sistema Único de Saúde (SUS). Isto é fato?
AD: Passados 21 anos da promulgação da lei 10.216, que deveria reorientar definitivamente a modalidade de atendimento em saúde mental no Brasil, é possível constatar algo importante: o que parecia inicialmente ser um avanço irreversível, com mais cidadania e menos asilo, mostrou-se, com o tempo, ser um passo sob ameaça constante de retrocesso. Cabe aqui uma pergunta: o que ocorre quando a Política Nacional de Saúde Mental é orientada por um modelo hospitalocêntrico? Temos a lógica asilar e, portanto, o fracasso do discurso e da conversação, pois na lógica asilar prevalecem o poder e a disciplina como formas de tornar os corpos e mentes dóceis ao Outro social. É importante lembrarmos que somente o espaço público e democrático poderá garantir um lugar de sujeito.

Agência UVA: Alguma outra mensagem que deseja passar?
AD: Não trabalho sozinha na Luta Antimanicomial aqui na Veiga. Trabalho com muitos amigos, colegas, alunos, monitores, estagiários, enfim, é um trabalho em rede! Onde ninguém solta a mão de ninguém em direção a uma dimensão ética da loucura. Nessa direção comum, trabalhamos para a construção de uma sociedade mais solidária e uma rede de assistência em saúde mental democrática e capaz de respeitar a cidadania dos sujeitos inseridos nesse campo. Por fim, quero declarar que a “Luta Antimanicomial na UVA” me devolveu a certeza de que não havia outro caminho senão este: a psicose é aquilo diante do qual um psicólogo não deve jamais recuar. Aproveito para convidar a todos, para que estejam conosco agora no dia 20, por meio das mesas e debates em nosso canal no YouTube.

Foto de Capa: Diane Picchiottino/Unsplash

Daniela Oliveira é jornalista, Mestre em Comunicação, professora e Coordenadora da Agência UVA

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Agência UVA é a agência experimental integrada de notícias do Curso de Jornalismo da Universidade Veiga de Almeida. Sua redação funciona na Rua Ibituruna 108, bloco B, sala 401, no campus Tijuca da UVA. Sua missão é contribuir para a formação de jornalistas com postura crítica, senso ético e consciente de sua responsabilidade social na defesa da liberdade de expressão.

1 comentário em ““A Luta Antimanicomial pretende reconstruir as relações entre a sociedade e a loucura”

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