O advento de novas tecnologias e a popularização das mídias sociais criaram não apenas novas formas de comunicação, mas também novos modos de trabalho, inclusive no setor livreiro. Afinal, a literatura não é apenas uma arte, mas um ofício, uma vez que escrever histórias, avaliar originais, revisar textos, traduzi-los, preparar o material, editar uma publicação e mais uma série de tarefas são atividades profissionais, as quais, muitas vezes, ficam invisíveis quando um exemplar chega às mãos do leitor.
Mas, graças à revolução digital, tais ocupações estão deixando as sombras. Por isso, em celebração ao Dia da Literatura Brasileira, a Agência UVA traz um panorama do mercado editorial brasileiro contemporâneo, apresentando a experiência de pessoas e projetos que, além de fazerem da literatura um trabalho, estão conseguindo destaque na área.
Escambau e sua “Escambanáutica”
É o caso da editora Escambau, surgida a partir de um coletivo idealizado pelo escritor Wilson Junior, em 2015, para suprir a falta de cursos de escrita criativa e iniciativas focadas na formação de novos autores que fossem financeiramente acessíveis e fugissem dos moldes acadêmicos.
Assim, com o objetivo de trocar conhecimentos e vivências de maneira local, em Fortaleza (CE), Wilson e alguns amigos criaram um blog, depois, um site, e, por fim, um grupo no Facebook, que acabou por virar uma grande comunidade, com pessoas de todo o país. Após um hiato de três anos, a equipe retornou aos trabalhos, já direcionando o projeto para os trabalhos da editora.
Foi nesse momento que surgiu a “Escambanáutica”, a revista literária do coletivo. Tal formato, aliás, vem se tornando cada vez mais popular por ser uma oportunidade para escritores iniciantes formarem um portfólio e um público cativo.
“As revistas servem para o autor se tornar mais conhecido, pelo menos dentro da literatura, que é muito nichado, já que a maioria do público leitor dessas publicações é de outros escritores. Furar a bolha do mundo da escrita para o mundo dos leitores ainda é uma dificuldade. Mas, definitivamente, é uma forma de as pessoas te conhecerem e você conseguir, talvez, um agenciamento ou um convite de publicação, como, também, uma espécie de validação do que você está produzindo”, Wilson analisa.
Ele, ainda, explica que os editais realizados pelas revistas costumam ser bastante concorridos, logo, ser selecionado pode sinalizar que a escrita de uma pessoa atingiu certo nível de maturidade. Porém, o escritor e editor ressalta que uma resposta negativa nesses concursos não é um atestado de falta de talento.
“Tem muita gente boa que, talvez, nunca passe [na seleção], porque isso sempre envolve uma questão de percepção. Se você olhar o cenário de pessoas que estão sendo publicadas em revistas, existe uma certa repetição de nomes, ou seja, há um conjunto de autores que está sabendo o que e como produzir para ser selecionado”, declara, acrescentando que, apesar das disso, esse modelo de publicação é, também, uma via de mão dupla, pois os leitores também são beneficiados pelo contato com uma outra sorte de produções literárias.
“Esse é um momento poderoso para quem está começando na escrita, seja para ler essas revistas, seja para tentar ser publicado em uma delas”, Wilson Junior define.
Abrindo portas
Aliás, de acordo com Moacir Fio, editor-chefe da Escambau, o público também é responsável pelo boom de revistas literárias dos últimos anos, e, consequentemente, pela projeção de novos escritores. “Há uma consciência maior por parte de um segmento de leitores engajados em buscar coisas diferentes, conteúdos fora do mainstream, o que valoriza não apenas autores independentes, mas, também, autores de minorias sociais historicamente silenciadas”, ele avalia, ressaltando, ainda, a importância do surgimento de novos agentes literários para esse movimento.
“É um processo demorado que precisamos acelerar”, diz Wilson.
Quem está passando por essa experiência é Karine Ribeiro, que, logo após ingressar no curso de Tradução (Inglês-Português) na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), desempenhou diversas funções no mercado editorial. Foi revisora, cargo exercido ainda hoje como freelancer, tradutora — quando foi responsável pela adaptação brasileira de “Em Busca de Mim”, autobiografia da atriz Viola Davis, publicada pelo selo Best-Seller —, além de outras atribuições como preparação e edição de textos, leitura sensível e crítica, avaliação de originais e coordenação de projetos, até chegar ao lançamento do próprio livro. Karine é a autora de “Secretária de Satã”, o qual define como “um queer horror bastante sangrento”. Pelo romance de estreia, ganhou o IV Prêmio ABERST de Literatura, na categoria Rubens Lucchetti de Narrativa Longa de Horror — o que lhe abriu muitas portas.
Além do trabalho como escritora, Karine assumiu a gerência editorial da editora independente Wish, onde publicou suas duas primeiras traduções — “Dez Dias em um Hospício”, de Nelly Bly, e “A Jornada de um Escravo Fugitivo”, autobiografia do ex-escravizado e ativista norte-americano Frederick Douglas. Com dois lançamentos previstos para 2023 pela Editora Naci, do Grupo Nacional e, agora, agenciada pela Increasy, a mineira afirma que, hoje em dia, é essencial que os manuscritos cheguem aos editores com um aspecto mais profissional.
“A ponte direta entre o autor e a editora é o agente literário”, explica. “E funciona como um atestado de qualidade: se o agente está disposto a investir e apresentar aquele autor, é porque sua obra tem potencial”, revela Karine.
Karine também esclarece que o contato entre escritor e agência pode se dar partindo das duas pontas. “Pode ser feito pelo próprio autor, submetendo seu trabalho às chamadas para envio de originais; ou com o agente tomando a iniciativa, o que costuma acontecer quando o autor já chamou bastante atenção para o seu trabalho nas redes”, diz.
Ela salienta que esse é um dos motivos pelos quais pessoas que desejam conseguir contrato com editoras tradicionais devem investir no ambiente online.
“Um conselho que sempre dou, seja para profissional do livro ou autor, é ter expressiva presença nas redes. O leitor está engajado por lá”, pondera.
Karine cita o exemplo da escritora Elayne Baeta, que, ainda iniciante, foi publicada pelo selo Galera, da Editora Record, graças à mobilização das “Baetinhas” — como suas fãs são chamadas — nos comentários dos perfis da casa editorial.
Book Tok e redes sociais
A mineira, ainda, relembra que “por muito tempo, as chances de um autor iniciante chegar a uma editora tradicional eram quase zero”, diferente do que acontece atualmente.
“O público leitor participa mais ativamente das escolhas dos títulos a ganharem as livrarias, graças à popularização da leitura pelas redes sociais, como TikTok e Twitter, que vêm expressivamente crescendo como plataformas de incentivo à leitura”, ela pondera.
Ou seja, mais uma vez, a audiência desempenha um papel relevante no funcionamento bem-sucedido das engrenagens editoriais e literárias. “Hoje, graças ao engajamento dos leitores e o poder das redes, um autor independente tem maiores chances de chamar a atenção de uma editora tradicional que o colocará nas livrarias, como é o meu caso e o de inúmeros talentosos colegas escritores desta nova geração”.
Além disso, manter-se ativo nas mídias sociais é importante, inclusive, para autores independentes, uma vez que muitos trabalhadores do setor ofertam seus serviços na internet. “As pessoas que fazem o mercado acontecer também também estão em peso [nas redes]. Não existe lugar melhor para falar do trabalho e conseguir oportunidades”, conta.
Segundo Karine, essa é uma das principais mudanças provocadas pelos avanços tecnológicos dos últimos. “Antigamente, buscar um profissional qualificado era como procurar uma agulha no palheiro. Hoje, com uma simples busca no Twitter, conseguimos acesso a inúmeros especialistas e a seus portfólios; a chance do autor independente conseguir um resultado de maior qualidade em sua obra é bem maior”, diz.
Aliás, Karine frisa: conhecer profissionais do mercado e o funcionamento do setor foi um ponto favorável à sua carreira, pois os editores já a conheciam — embora não soubessem de seu trabalho como escritora, dado que ela mesma não comentava acerca dessa ocupação.
“Com o prêmio, passei a falar mais da minha produção, o que me levou a receber propostas de publicação em editoras tradicionais antes mesmo de ser agenciada”, a autora recorda. À vista disso, ela aconselha escritores iniciantes a se aproximarem de profissionais da área — seguindo-os em redes sociais ou entrando em contato diretamente —, para entender como o setor opera, mesmo sem ter materiais para apresentar. Tal recomendação, inclusive, resguarda os novatos de golpes, infelizmente, muito comuns.
“Vemos acontecendo aos montes com gráficas que se disfarçam de editoras e acabam com o sonho de muita gente”, Karine lamenta.
Caminhos independentes
Mas, enquanto alguns escritores almejam contratos com as grandes editoras tradicionais, outros preferem seguir a carreira de forma independente. Um exemplo desse último tipo é Jean Gabriel Álamo, 24, que sempre foi fascinado por leitura, porém, somente após ler “O Senhor dos Anéis”, de J. R. R. Tolkien, aos nove anos de idade, percebeu o desejo de viver da escrita.
Assim, dos 12 aos 24, o mineiro planejou todo um universo literário, onde todos os seus livros são ambientados. E, desde o lançamento de seu primeiro romance, em 2017, ele não parou mais, sendo um dos escritores independentes mais prolíficos atualmente. No entanto, conforme conta, sua identidade literária pode “criar certos entraves no meio editorial”, pois, uma vez que suas tramas se passam no mesmo macrocosmo, ser publicado por um casa editorial esbarraria em questões de direitos autorais.
Jean explica que, ao assinar com uma editora, esta passa a ser a detentora dos direitos da obra por um período de dois a cinco anos, além de os contratos de exclusividade, em geral, serem renovados a cada nova publicação.
“Ter os direitos autorais presos é um empecilho grande no meu caso, porque isso implica, até mesmo, no uso de personagens em outra história, ainda que uma não seja continuação da outra”, esclarece o autor.
Ainda, o ritmo de produção do escritor também seria um problema. “Nenhuma editora publicaria 21 obras num período de cinco anos, que é o total de histórias que tenho lançadas neste mesmo universo. Ou seja, meu ritmo de publicação cairia, eu ficaria refém da empresa e, ainda por cima, passaria por um duro controle criativo”, diz. Jean também relata que já passou por algumas experiências desagradáveis em editoras tradicionais, resultando até em rescisões de contrato.
Contudo, embora não descarte a ideia de publicar por casas editoriais, Jean afirma que concessões teriam que ser feitas. Ele, por outro lado, também não se opõe à escolha do modelo clássico. “Para muitos autores, existem boas opções por aí. Acontece que, até o momento, seja por limitações logísticas ou teimosia contratual por medos diversos, poucas estiveram dispostas a essas publicações”, pondera. E a escolha de ser um escritor independente tem se mostrado satisfatória, pois, por alguns anos, Jean, além de lançar seus livros pela plataforma Amazon, também prestava serviços editoriais — tanto por necessidade quanto por amor, segundo conta.
Todavia, hoje, ele consegue sustentar a família com o lucro da venda dos livros em formato digital, recebendo algo entre R$ 1.500,00 e R$ 2.200,00 por mês.
“As pessoas têm a visão de que um autor, quando passa a viver da sua escrita, é porque está ganhando bem. Pelo menos no meu caso, não é assim. Levando-se em conta que tenho um filho pequeno e uma esposa que não pode trabalhar lutando para se aposentar, isso nos joga na classe-média baixa. Mas ao menos não estamos passando apertos financeiros”, relata, explicando que quando “queremos nos dar algum luxo ou temos algum gasto adicional com a saúde”, ele pega alguns trabalhos de revisão para complementar a renda.
Sobre a remuneração praticada pela Amazon ser justa ou não, Jean considera esse um tópico debatível. “Se eu publicar em uma editora, ganho 10% sobre o preço de capa; se eu lanço direto na Amazon, 35% dos royalties sobre o preço do livro; publicando exclusivamente na Amazon por um valor que seja de R$5,99 para cima, ganho 70% com alguns poucos descontos que não deixam abaixo de 65%”, detalha.
Apesar disso, o escritor acredita que tal vantagem custará caro para o mercado no futuro, e, por isso, não pretende permanecer na plataforma indeterminadamente, assim como tem planos de propiciar alternativas a outros criadores.
O primeiro passo para isso foi, justamente, a produção da revista “Literatura Fantástica”, da qual, além de fundador, é editor-chefe. “Acredito que uma das saídas possíveis para o buraco no qual o mercado se encontra seja o surgimento delas [revistas literárias]. Ao menos, parte da solução. O que me motivou a criar a revista foi um misto de ódio pelo mercado, rancor das editoras e escárnio por bastiões do mercado editorial”, ele enumera. Jean também revela que o estopim foi o caso do editor da editora Leya, que perdeu os direitos de publicação do escritor Brandon Sanderson, escritor norte-americano de fantasia e ficção científica.
À época, a empresa alegou vendas insuficientes e retração global do gênero fantasia — porém, tal estilo de narrativa vem apresentando crescimento constante. A despeito da justificativa apresentada, quando a notícia repercutiu nos veículos de mídia, vários fãs brasileiros relataram sequer saber que o autor havia sido publicado no Brasil. Para Jean, imbróglios como esse são resultado de incompetência de empresários do ramo.
“Eles acham que autores best-sellers estrangeiros se vendem sozinhos por se prenderem a modelos de vendas que entraram em declínio décadas atrás”, declara.
Essas questões internas das editoras, envolvendo logística, remuneração, e liberdade criativa, em especial, de acordo com Jean, justificam sua escolha pela publicação independente. Ele considera que, recebendo 10% de royalties sobre o preço de capa de um livro, um valor ótimo quando comparado aos padrões do mercado, os exemplares deveriam chegar ao seu público, predominantemente, classe-média baixa e pobre, a preços mais acessíveis.
O autor conta ainda que chegou a participar de algumas antologias, mas a maioria ainda não foi publicada, resultando em um atraso de dois anos. Isso tudo por conta de problemas de planejamento da casa editorial — algo que, como relata, não acontece na auto publicação.
“Para que eu vou limitar meu ritmo de publicações enquanto sofro interferências criativas, recebo menos royalties por livros mais inacessíveis financeiramente, passando por burocracias limitantes, tendo pouca ou nenhuma melhora na divulgação das minhas obras e ainda passando raiva com problemas editoriais pelos quais não passo no mercado independente? Não é algo que faça sentido para mim”, decreta Jean.
Por isso, o autor optou por não aplicar o método editorial tradicional em sua revista. A começar pela base desse tipo de publicação: a oportunidade, tanto para iniciantes quanto para escritores com carreiras longas que ainda não conseguiram destaque, estabelecendo um diálogo entre diversos públicos.
“Nós temos autores que foram publicados pela primeira vez lá e hoje são, para os parâmetros nacionais, best-sellers; ao passo que autores com anos de carreira finalmente ganharam alguma projeção”, diz. Ele também relembra que, no começo, não conseguia remunerar os criadores dos textos publicados, porém, hoje em dia, graças à confiança depositada na iniciativa, “é possível pagar mensalmente a cada um dos selecionados mais do que a maioria dos escritores nacionais recebe em um ano”, o que, segundo Jean, é um estímulo quase inexistente no mercado atual.
Além disso, os publicados pela “Literatura Fantástica” não ficam presos a contratos de exclusividade, e o lucro que ficaria para Jean é direcionado para ações sociais. No entanto, a divulgação compensa. “Não vou negar que ser editor-chefe da revista me ajuda em termos de publicidade. Acaba levando meu nome para públicos formados por outros autores, e, de certo modo, isso facilita muito o meu trabalho de divulgar as minhas próprias obras”, ele admite. Essa é outra vantagem proporcionada pelas mudanças decorrentes dos avanços tecnológicos que geraram alternativas ao mercado tradicional. A internet e as redes sociais, ferramentas essenciais para os escritores hoje em dia, como enfatizou Karine, permitem maior interação e contato tanto entre os criadores de narrativas quanto com os leitores — não à toa, a maioria dos coletivos de escrita estão no ambiente virtual.
Contradições habituais
Apesar da atual facilidade de acesso, algumas críticas são feitas aos hábitos de leitura dos brasileiros. Para Moacir Fio, da Escambau, até mesmo escritores nacionais não costumam ler além dos clássicos obrigatórios escolares, deixando de lado tanto obras contemporâneas quanto publicações anteriores que fogem ao cânone, o que, na opinião do professor de escrita, é uma conduta danosa.
“Isso é preocupante porque não formamos uma cultura literária brasileira e ficamos o tempo todo olhando para fora, tentando reinventar a roda. É um fenômeno que observo, sobretudo, na literatura fantástica e na Young Adult (YA); não vejo, por exemplo, novos autores de ficção científica referenciarem os grandes nomes nacionais, como Bráulio Tavares”, diz.
Moacir considera tal contexto muito grave, pois, ao tentar apenas emular produções estrangeiras — em especial, as estadunidenses —, o Brasil fica para trás.
Em razão disso, o editor da “Escambanáutica” afirma que a principal contribuição dos coletivos deve ser o estímulo a uma literatura nacional autossuficiente, sem isolar a criação. Já o idealizador do projeto, Wilson Junior, vê a situação como um triste sintoma da sociedade frenética.
“Até para aqueles que desempenham o ofício da escrita, o ato da leitura se torna uma atividade secundária”, coloca. O escritor, ainda, ressalta que, por meio das iniciativas do Escambau — como as revistas, os cursos e workshops de escrita, nos quais também atua como professor —, ficou claro que ler o trabalho de colegas é uma forma não apenas de desenvolver um olhar crítico, mas, também, de aprender a avaliar mais criteriosamente as próprias obras. “Além disso, você constrói laços na área, faz networking. É fundamental para quem quer ter uma carreira longeva na literatura”, conclui.
A escritora Karine Ribeiro tem outra percepção, afirmando que há toda uma nova geração de criadores muito engajados com as relações no meio literário. “Sempre comento sobre isso. É muito bonito ver o apoio, tanto nas redes quanto presencialmente, em lançamentos, eventos e bienais. Em geral somos uma grande família que se apoia e se eleva”, ela define, acrescentando que não é incomum ver autores renomados recomendando novatos e escritores independentes.
“Fico muito feliz em testemunhar esse acolhimento em primeira mão”, comemora. Mas, apesar das discordâncias sobre esse aspecto, os três convergem quanto à questão da identidade literária nacional. E, na visão de Moacir, ambos os tópicos estão interligados. “Queremos que autores leiam uns aos outros não apenas para que role esse apoio mútuo, mas, acima de tudo, para estabelecer uma linguagem nossa”, ele explica.
Essa também é a vontade de Karine, que deseja uma literatura brasileira “mais nacional” e plural. Ela, ainda, aponta para outra problemática social que, claro, estende-se ao meio literário: a diversidade. “As portas estão se abrindo, mas, para as minorias, a estrada é longa. Quero ver cada vez mais narrativas diversas nas mãos dos leitores, e, para isso, é necessário que mais autores sejam notados e publicados pelas grandes editoras”, completa. A escritora assegura já ser possível observar esse movimento aos poucos, mas espera que as exceções se tornem a norma no futuro. Além disso, para ela, os leitores são elementos essenciais nesse processo de mudança, por ora, incipiente no Brasil.
“Os avanços sociais, ainda que lentos, permitem maiores liberdades a esses leitores, em especial o leitor jovem, que quer se ver representado nas narrativas, inclusive regionalmente. Além de exigir publicação de narrativas representativas, o leitor quer essa proximidade com o autor, que obviamente é mais acessível com autores nacionais”, diz Karine.
Ela analisa esse contexto a partir da própria experiência, afinal, conhece as barreiras enfrentadas por integrantes de populações social e historicamente minorizadas. “De início, as dificuldades foram imensas. O mercado editorial é bem fechado, e eu, enquanto profissional negra, encontrei alguns percalços para ingressar e me estabelecer”, relata. Felizmente, a jovem pôde contar com o apoio de profissionais já reconhecidos no mercado, como Regiane Winarski, Lorraine Fortunato e Stefano Volp — pessoas com as quais mantém amizade e parceria até hoje. E esse princípio de inclusão e diversidade é uma característica das iniciativas independentes.
Enquanto existem revistas literárias voltadas exclusivamente para a publicação de textos escritos por mulheres, ou focadas em autores nordestinos e nortistas, a “Escambanáutica” prioriza e introduz um novo conceito — correlato, mas ainda desconhecido do grande público e, até mesmo, de profissionais do livro.
“A gente busca uma ficção fantástica decolonial; histórias que tenham o olhar mais voltado para a América Latina, bebendo das culturas indígenas e africanas”, Wilson contextualiza.
E Moacir salienta que essa abordagem é muito eficaz para encontrar novas narrativas e talentos. “É um conceito novo e desafiador, mas instigante, que nos faz ter sempre curiosidade pelo que nossos autores apresentarão”, revela.
Além disso, outra escolha do grupo também está alinhada a tais ideais. O foco no gênero fantástico foi, à princípio, uma preferência do coletivo. Moacir explica que revistas literárias devem ser projetos apaixonantes, pois são trabalhos que, em geral, não rendem financeiramente e representam um desafio constante.
“Por isso, acredito que a escolha por gêneros específicos deve ter mais a ver com aquilo que o corpo editorial ama. Ou assim deveria ser”, conta. Wilson corrobora com a definição; segundo ele, projetos independentes são movidos à paixão, e isso se soma à falta de espaço que o sci-fi e a fantasia têm no cenário nacional. “Isso vem mudando, a gente está vendo, cada vez mais, editoras de grande porte investindo nessas publicações”, ele avalia, revelando que até mesmo best-sellers estrangeiros desse tipo enfrentam dificuldade ao tentar adentrar o mercado brasileiro.
E foi com esse senso de coletividade e paixão que o Escambau conseguiu lançar seu primeiro romance, “999”, uma ficção histórica passada nos últimos dias do ano que dá nome à trama. Escrito por Wilson Júnior, o livro envolveu um grande esforço de diversas pessoas para vir à luz.
“A minha vivência na literatura sempre foi comunitária, antes mesmo de criar o Escambau”, conta. Ele, ainda, explica que a união não contou só com o apoio dos fãs, mas, também, com amigos, colaboradores da “Escambanáutica” e até ex-alunos do escritor produzindo o lançamento do título e desenvolvendo as metas extras da empreitada, como contos complementares e RPG derivados.
“Se você perguntar às pessoas que fazem parte da comunidade dos Escambanautas, todos sentem esse sucesso como deles também, porque a gente sabe que conquistar um financiamento coletivo é um trabalho de formiga. E o meu formigueiro é grande”, brinca Wilson.
Saga do bruxo carioca
Quem também percorre os gêneros pouco valorizados em terras brasileiras é Jean Gabriel Álamo, autor de 27 livros, dos quais cinco formam a série “Feiticeiro de Aluguel”, que pode ser lida em qualquer ordem sem prejuízo à compreensão. Após diversas publicações de ficção científica e horror cósmico, o escritor decidiu adentrar o território da fantasia urbana ao iniciar a saga do bruxo carioca prestador de serviços místicos.
O criador vê como principal apelo dessa obra o fato de suas inspirações e influências basilares não serem oriundas do gênero ao qual ela pertence.
“Creio que isso gere uma atmosfera diferente, sobretudo por serem histórias desenvolvidas num universo que pode muito bem ser o nosso e toma como base para o sobrenatural, além de religiões existentes e cosmologias milenares; tudo isso em tramas urbanas que falam muito desse Brasil que não se vê na novela das nove e muito menos em livros que buscam ser comerciais”, ele conjectura.
Jean, aliás, afirma não ter se preocupado em seguir fórmulas de mercado, muito voltada para arquétipos conhecidos e poderes mágicos impressionantes. Em vez disso, ele preferiu se basear nos “absurdos da realidade cotidiana brasileira”, como define. Assim, a franquia versa a respeito de temas ainda considerados tabus, como fanatismo religioso, tráfico, milícia, sexo — em suas mais diversas formas — e preconceitos. “Decidi abordar as diferentes violências cotidianas, a sujeira das ruas no sentido mais amplo possível e mesclar tudo isso com o humor ácido que precisamos carregar para fingirmos, para nós mesmos, que ainda temos sanidade mental, apesar do capitalismo”, ele declara, em uma demonstração do tom de jocosidade apresentado na narrativa.
E, conforme sua própria produção já demonstra, Jean concorda com os colegas de profissão ao afirmar que há muito potencial para tramas que ostentem uma identidade nacional, driblando as influências estrangeiras. “A literatura possui potencial infinito, pode-se explorar tantas possibilidades quanto as que não foram ainda pensadas”, revela.
Aliás, o poder e a interferência da produção literária do norte global — principalmente, dos EUA — moldaram não apenas a percepção da audiência acerca do que esperar das criações ficcionais, mas, também, as expectativas e parâmetros do mercado brasileiro para quais obras publicar, sendo, então, um importante fator para compreender a atual situação do setor.
“Vivemos uma verdadeira invasão de literatura estadunidense nos anos 2000, o que, inclusive, não se traduziu em formação de público leitor, pelo contrário, e resultou em toda uma crise em editoras e livrarias Brasil afora”, explica Moacir Fio.
Caminhos possíveis
Apesar disso, nenhum deles parece se arrepender do caminho escolhido. Jean declara que é difícil determinar uma razão racional para a escolha da escrita como profissão. “Alguém religioso pode dizer que por vocação; um materialista diria que por questões sociais; um entusiasta de genética poderia perceber que existiram outros artistas na minha família paterna — geralmente, músicos — e isso apontaria uma tendência natural ao campo artístico”, ele conjectura.
Porém, mesmo diante dessa dificuldade em precisar um motivo, o autor aponta a impossibilidade de qualquer outra área satisfazê-lo tanto quanto a literatura, “apesar dos percalços causados mais por questões de mercado do que pelo ofício de escritor em si”. Tal perspectiva também é apresentada por Wilson ao definir a desmotivação com outras áreas como a causa de seu trabalho literário.
Ele lembra que se viu às portas da formatura em História, mas sem qualquer pretensão de seguir carreira acadêmica ou em sala de aula, além de, à época, trabalhar em outra área da qual não gostava também. “E eu decidi ser escritor. Quando tomei essa decisão, mergulhei de cabeça nisso, e, obviamente, fui muito consciente de todas as dificuldades de ser uma pessoa que trabalha com arte no Brasil, e com a literatura, uma arte ainda mais nichada”, revela.
O criador do Escambau conta, ainda, ter se apaixonado pelo ofício como um todo, para além da leitura, em especial, após começar a estudar e ensinar escrita, algo que o motivou como nenhuma outra atividade havia conseguido, e, por isso, uma atuação mediana, pela primeira vez, não era o suficiente para Wilson.
“Gosto muito de falar como eu era uma pessoa medíocre, e não num sentido ruim da palavra, mas de ser mediano; sempre fui um aluno muito mediano, na escola, na faculdade; nunca fui bom atleta, e isso nunca, necessariamente, me incomodou. A literatura, talvez, tenha sido o primeiro lugar em que ser mediano não me satisfez; é uma coisa que me motiva, impulsiona a melhorar, a aprender mais. E quanto mais eu aprendo, quanto mais mergulho, parece que tem mais coisa, mais fundo para cavar. Então, tem sido uma vivência fantástica”, diz Wilson.
Contudo, o escritor faz questão de ressaltar o ônus de ter a literatura como ofício, principalmente porque, hoje em dia, a maior parte do trabalho é freelancer, já que, a despeito do sucesso dos projetos Escambau, EscambaClube e “999”, isso não se traduz em grande lucro para o criador.
“De certa forma, ter um projeto bem sucedido não significa, necessariamente, que você está monetizando bem o seu trabalho, e isso é algo que eu ainda sofro”, revela. E não apenas se manter no mercado é difícil, mas entrar nele também é. Bruno Zolotar, diretor comercial e de marketing da Rocco, explica que as editoras — em especial, as grandes — têm uma grande quantidade de livros a serem lançados. Além disso, a pandemia diminuiu a publicação de novos títulos, aumentando a fila de espera, e, como cada título é um investimento, as casas editoriais estão bastante conservadoras.
Por isso, quem já faz parte do setor coleciona algumas dicas para os novatos. Bruno indica dois caminhos possíveis. “O primeiro é se auto publicar na Amazon, com livro digital ou impresso nessas gráficas rápidas, e vender pelos canais digitais”, diz. Com isso, é possível ir às editoras com números concretos para demonstrar o funcionamento comercial da obra, em vez de simplesmente enviar um manuscrito e aguardar uma resposta.
A segunda proposta do diretor é recorrer ao agente literário, um profissional que representa vários autores e conhece muito bem as empresas desse mercado, sabendo, assim, para qual selo vale a pena enviar um original.
“Esse é um caminho que tenho visto funcionar, porque os editores não têm tempo de ler tudo que chega até eles. Então, o agente faz esse primeiro filtro e fala: ‘Fulano, da Sextante, tem um livro aqui que é a cara de vocês; Fulano, da Rocco, tem um livro aqui que é a cara de vocês’”, explica Bruno.
Para os que decidirem seguir o rumo independente, Jean destaca a importância de uma boa publicidade; de acordo com ele, pode-se recorrer a cursos de divulgação online — com muitas opções baratas ou gratuitas, algumas, inclusive, voltadas para escritores.
“Nesse caso, cabe cautela, pois o que mais existe é autor que nunca vendeu um livro na vida tentando empurrar curso pago para lucrar por fora, na esperança de que isso projete os próprios livros. É a cultura do coaching plantando raízes nesse mercado”, alerta, ressaltando a necessidade de formar uma base e estabelecer contato com pessoas mais experientes — até para compreender as questões logísticas envolvidas. Isso, segundo conta, acontece naturalmente ao se estudar maneiras de atingir o público de interesse, basta ter paciência.
Ele, ainda, relata que, mesmo em grandes editoras, muitas vezes um livro tem todos os predicados para fazer sucesso, porém não vende. “Mas, tomando cuidado ao apresentar um bom livro e sabendo direcionar o público, você provavelmente chegará lá e, ainda, conseguirá contratos editoriais que possam te atender, dependendo do seu objetivo”. Jean salienta a vantagem de ser contatado pelas editoras: quem é procurado tem mais poder de negociação. E, após recomendar que só se busque selos bem recomendados por autores confiáveis, a fim de evitar golpes de falsas casas editoriais, o escritor faz mais uma recomendação.
“Não seja burro: se a editora te cobra para publicar caso você não venda X obras, é porque o prejuízo será seu. O número mínimo de livros é muito acima da média de vendas no tempo estipulado. Ou seja, se você aceitou um contrato que promete mil maravilhas de forma fácil nessa dinâmica, prepare-se: você está prestes a ser roubado, e o pior, com consentimento em contrato”, diz.
E, para encerrar a reportagem especial da Agência UVA em comemoração ao Dia da Literatura Brasileira, a escritora Karine Ribeiro dá um último conselho — que, à primeira vista, pode parecer óbvio, mas no dia a dia de altos e baixos dos autores acaba sendo muito útil. Àqueles que desejam fazer da escrita uma profissão:
“Escreva. Conte sua história. Preocupe-se mais tarde com a publicação e com ganhar público. Esteja nas redes sociais, mas não se deixe engolir por elas. Lembre-se: você é escritor. Sua principal função é escrever”, diz Karine.
Arte de Capa: Montagem com os livros/Agência UVA
Reportagem por Daniel Deroza, com edição de texto de Daniela Oliveira
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