“As minhas lágrimas eu pingo 24 horas, todos os dias”, conta Dona Hortência, de 58 anos, que teve seu filho morto pelo Estado. Moradora da Nova Holanda, ela é uma das 59 mulheres entrevistadas da pesquisa “Violências, corpo e território: sobre a vida de mulheres da Maré”, organizada pela Redes da Maré, em parceria com a Universidade de Cardiff, no Reino Unido, Universidade de Warwick, na Inglaterra, e a Escola de Serviço Social da UFRJ, entre setembro de 2021 e novembro de 2022. O estudo mostra que as mulheres da Maré expostas à violência armada estão mais propensas a doenças como hipertensão, síndrome do pânico e depressão.
Lançada no último mês de abril, a pesquisa ouviu, durante os 14 meses, moradoras do Complexo da Maré, que abriga cerca de 16 favelas e mais de 140 mil pessoas, na Zona Norte do Rio de Janeiro. Desenvolvido por meio de dinâmicas com mulheres assistidas dos projetos “Maré de Direitos” e “Casa das Mulheres da Maré”, o estudo envolveu cinco ferramentas: rodas de conversas, entrevistas individuais, oficinas de arte corporal como dança e yoga, atividades externas e encaminhamentos sociojurídicos para a rede de serviços do território.
De acordo com a pesquisa, as mulheres expostas à violência estão mais sujeitas a doenças como hipertensão, diabetes e transtornos alimentares. Além disso, os confrontos armados na comunidade também são responsáveis pelo desenvolvimento de transtornos psicológicos dessas mulheres, como estresse, síndrome do pânico, ansiedade e depressão.
Operações policiais
A presença de operações policiais na Maré tem grande efeito sobre os moradores: viver sob ameaça constante de violência contribui não apenas para problemas de saúde mental, mas são externados em como as mulheres sentem seus corpos e cuidam de outros corpos.
A cidade em si promove uma influência notável na relação das mulheres com seus próprios corpos, pois afeta como elas veem a si mesmas e os outros. Afeta como se movem e para onde vão, onde encontram segurança e conforto, como cuidam do seu corpo. É, definitivamente, uma relação corpo-território.
As operações policiais, aliás, são o motivo de medo unânime entre as entrevistadas. Elas ocorrem de forma imprevisível, sem saber quando haverá perigo. Outra preocupação é o modo como os agentes de segurança atuam, mulheres pretas demonstraram revolta em relação aos abusos de autoridade, violações e discriminações cometidas pela polícia dentro da favela.
De acordo com os depoimentos, os pesquisadores tentaram conhecer também comportamentos frente à morte de um filho ou parente. Eles mostram que os veículos de mídia, que muitas vezes expõem o caso de forma depreciativa, geram indignação e raiva.
Com o passar do tempo, essas mulheres buscam lidar com o luto de formas alternativas, como engajando-se em lutas políticas ou em bases comunitárias. Moradora da Nova Holanda desde os 15 anos, Vânia Silva conta que a perda de seu filho para o território devido à violência de civis armados, foi o motivo de ingressar em ONGs da Maré para ajudar outras mulheres que também sofreram perdas traumáticas na família:
“Depois de vivenciar aquilo, ao juntar minha perda com várias outras perdas que estavam acontecendo na comunidade, você vê a importância de estar ali sendo resgatada e resgatando vidas. Foi um momento muito importante para mim”, conta a mareense Vânia Silva
Apenas entre 2017 e 2022, o projeto De Olho na Maré registrou 159 operações policiais e 123 confrontos entre grupos armados, que culminaram em 205 mortos e 186 feridos por arma de fogo. Além de 572 violações de direitos individuais, 93 dias sem aulas na região e 120 dias com atividades interrompidas nas unidades de saúde das favelas do Complexo.
A pesquisa serviu para mapear os diferentes tipos de violência vivenciados pelas pessoas que vivem nessa região de frequente conflito armado. O objetivo é identificar as estratégias de cuidado, proteção e enfrentamento ao problema, desenvolvidas pelas mulheres do Conjunto de Favelas da Maré, buscando produzir subsídios para a rede de proteção às vítimas. Para o estudo, foram formuladas perguntas englobando diretamente o assunto, resultadas de um processo colaborativo na produção de conhecimento que combinou investigação, acompanhamento das vítimas que fazem parte do contexto, e a promoção de espaços seguros e de cuidados. Além disso, os serviços de atendimento jurídico e psicossocial atuantes na Maré receberam o encaminhamento dessas mulheres.
Tiroteio interrompe evento de lançamento da pesquisa
O evento para o lançamento da pesquisa “Violências, corpo e território: sobre a vida de mulheres da Maré” aconteceu na tarde do último dia 14 de abril, na Casa das Mulheres da Maré do Parque União, quando um tiroteio durante operação da Polícia Civil assustou os moradores. Ninguém ficou ferido.
Cerca de 70 mulheres acompanhavam o evento e tiveram que se deitar no chão da ONG para se proteger dos tiros. Dentre as presentes, estava a deputada estadual Renata Souza (PSOL), que preside a Comissão de Defesa dos Direitos das Mulheres na ALERJ. A deputada se manifestou em suas redes sociais comentando o ocorrido:
“Presenciei mulheres com crise de pânico, crianças e bebês de colo chorando com mães apavoradas, vivemos muitos momentos de tensão e terror”, relata a deputada estadual Renata Souza (PSOL).
Renata gravou o momento do tiroteio:
Entre as convidadas do evento estavam as pesquisadoras Claire Blencowe (Universidade de Warwick), Julian Brigstocke (Universidade de Cardiff), Joana Garcia e Rosada Morgado (Escola de Serviço Social da UFRJ).
De acordo com a Secretaria Municipal de Educação, duas escolas foram afetadas pelo confronto deste dia, impactando 309 alunos.
A Polícia Civil diz que agentes da Delegacia de Roubos e Furtos de Cargas estiveram na região para combater a entrada de cargas roubas na comunidade. Durante a operação, homens armados atacaram a equipe e acertaram a viatura, começando o tiroteio nas proximidades da avenida Brasil, que ficou fechada por alguns minutos. Na ação, os policiais localizaram um caminhão com carga avaliada em cerca de R$ 2 milhões roubada, que foi recuperada.
Foto de capa: Fernando Frazão/Agência Brasil
Reportagem de: Jorge Barbosa, com edição de texto de Daniela Oliveira
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