por Diego Rivas de Luca
Dentro de um prédio abandonado, no Centro do Rio de Janeiro, morava Luíza França, travesti paraibana de 44 anos, que se mudou para a cidade com um sonho de uma vida melhor. No mesmo local, residia Mikael Angelo dos Santos de Oliveira Lopes, homem trans, 24 anos, carioca. Ambos compartilhavam uma mesma dor, uma mesma história: a rejeição familiar e o acolhimento das ruas. Duas vidas, duas histórias que se conectaram e se encontraram graças à CasaNem, uma das casas de acolhimento para a população LGBTQIA+ em situação de vulnerabilidade, ambiente que resgatou neles um sentimento de pertencimento e família que lhes havia sido roubado.
“Lá na Casa nós somos iguais a qualquer família, temos nossas brigas, mas também temos nossos momentos de ver TV, escutar música e nos divertir”, expressa Mikael. Não foi só o alimento, a cama e a segurança que eles conseguiram dentro da CasaNem. Eles conquistaram também algo tão valioso quanto: o amor e a irmandade.
A história de Luiza com a casa começou há pelo menos dez anos. Ao chegar no Rio de Janeiro, ela foi morar com parentes que a subjugavam, a maltratavam, a exploravam por um prato de comida, e lhe negavam o básico: educação. Luiza é analfabeta. Exausta de ser maltratada, ela encontrou a solução na rua. O crime e a prostituição a alimentavam. A região da Lapa era uma de suas preferidas, e foi ali que Indianarae Siqueira, fundadora da CasaNem, a encontrou e a convidou para conhecer o espaço. Do chão frio da rua, Luiza foi para o conforto de uma cama. Do crime, ela foi para o novo hobby, cozinhar para ela e para suas companheiras de moradia.
“A Indianarae passava pela gente dormindo ali pelo chão da Lapa e nos chamava para ir conhecer a CasaNem”, lembra Luiza França.
Uma das amizades que Luiza fez dentro da CasaNem foi Hevelin Costa, pesquisadora, professora de Fotografia, professora transdisciplinar, que atuava na casa como voluntária e colaboradora. Hevelin é uma uma mulher cis, branca, bissexual, que se envolveu no projeto da CasaNem por amor, empatia e com um desejo de transformar o mundo. “Na minha adolescência, a maioria das minhas amizades era lésbica, e eu vi muitas delas parando de estudar e saindo de casa para poderem namorar e ficar com as pessoas que elas amavam”, expôs Hevelin. Foi graças a ela que Luiza tirou uma foto que hoje está exposta no museu MAR, no Rio de Janeiro.

Hoje, Luiza está sendo alfabetizada graças a um programa de alfabetização da CasaNem e, além disso, não está mais morando nem na rua e nem na instituição. Ela agora mora de aluguel, na região do Centro da cidade, graças a um emprego que conseguiu como orientadora no museu MAR. Apesar de todas as violências vividas, Luiza gosta de reforçar que foi com muita força de vontade de querer mudar e sair das ruas que ela conquistou essas mudanças.

(Foto Acervo pessoal/Hevelin Costa)
Semelhante a Luiza, Mikael também veio das ruas para a CasaNem e hoje está morando no Morro da Providência, Zona Portuária da cidade. Sua vida se transformou devido aos projetos oferecidos pela instituição e hoje ele colabora nos espaços da Casa de forma voluntária. Ele relembra uma memória afetiva que o marcou no seu tempo de passagem pela casa: “Depois de uma manifestação pela causa, a polícia nos arrastou para a delegacia e lá fui agredido por um policial que jogou spray de pimenta nos meus olhos. Lembro de não conseguir enxergar nada e só sentir alguém me abraçando, falando ‘sua mãe está aqui, calma! Sua mãe está aqui’”. A pessoa que o acalmou era Indianarae Siqueira.

(Foto Diego Rivas)
Luiza e Mikael hoje se reconhecem como irmãos. Mikael a chama de “mana” e a todo momento gosta de reforçar seu carinho e sua gratidão pelo acolhimento recebido dentro da CasaNem. “Tudo o que eu sou hoje, a força que eu tenho hoje, foi tudo graças à vivência e ao acolhimento que tive lá na CasaNem”, emociona-se Mikael.
CasaNem: história
A CasaNem surgiu no Rio de Janeiro como um projeto de estudos para o Enem voltado ao público LGBTQIA+, o conhecido “Preparanem”, mas, segundo Hevelin Costa, um novo olhar foi necessário para adaptar a acessibilidade das aulas para os alunos. “A gente começou a perceber que os alunos paravam de frequentar as aulas porque não tinham o que comer e onde dormir”, relembra Hevelin. A partir desse olhar, a CasaNem começou a ocupar prédios abandonados pela região do Centro do Rio, sob a liderança de Indianarae Siqueira, para tentar dar mais algum tipo de humanidade para os que necessitavam.

(Foto: Reprodução/Google)
Hoje a casa vive por meio de doações, de campanhas públicas de financiamento coletivo e também de eventos organizados para ajudar na arrecadação mensal. No mês de junho deste ano, a casa realizou o maior evento de sua história, o festival “Be Yourself”, que contou com a participação de grandes nomes da música nacional, como Karol Conka e Maria. O evento foi realizado na tradicional casa de show do Circo Voador, na Lapa.
Atualmente, a CasaNem não vive mais de ocupação: conquistou uma casa fixa no bairro do Flamengo, cedida pelo governo da cidade, e o atual contrato é de cinco anos, podendo ser estendido. Em seus espaços oferece diversos projetos sociais, como uma rede de psicólogos trans para apoiar os moradores ou quem estiver precisando, arteterapia, aulas de alfabetização e pré-vestibular para o Enem.
Reportagem realizada por Diego Rivas de Luca para a disciplina Apuração, Pesquisa e Checagem, ministrada pela professora Maristela Fittipaldi
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Linda matéria!! Escrita com muito cuidado e respeito! Parabéns!!
Matéria sensacional! Parabéns a todos os envolvidos!!! Parabéns Diego!
Parabéns! Lindo e respeitoso!!!
Parabéns pelo trabalho !
Matéria incrível! Espaço importante que precisa de visibilidade. Parabéns!
Parabéns Diego, excelente matéria!!!
Que matéria linda, Diego! Parabéns pelo trabalho e carinho na escrita!
Muito linda essa matéria parabéns!