
A pandemia do novo Coronavírus vem expondo e tornando ainda mais grave um drama que não é novo nem vem de hoje: a crise do sistema penitenciário brasileiro, que reflete o descaso com os Direitos Humanos básicos no país, além de outros problemas sociais, como o racismo estrutural, que permanece em evidência quando pessoas negras e periféricas são mantidas prisioneiras sem que haja julgamento adequado em primeira instância. Isso ocasiona a superlotação das penitenciárias no país e torna as condições de vida cada vez piores e mais precárias.
Na foto: Presídio Ary Franco em Água Santa – Rio de Janeiro (Reprodução/CNMP)
Os números não deixam dúvidas de que todo o sistema precisa ser revisto. Segundo os dados gerais do Levantamento de Informações Penitenciárias – Infopen (2018), as prisões do país têm uma taxa de ocupação de 200% – ou seja, elas têm capacidade para receber somente a metade do número de presos. Considerando, ainda, que 45% dessas prisões são realizadas sem sentença de condenação transitada em julgado, percebe-se que quase a metade da população privada de liberdade é presa provisoriamente. Com isso, os cuidados de higiene e distanciamento necessários durante a pandemia do novo Coronavírus se tornam impossíveis nesses ambientes, colocando em risco a vida dos presidiários e privando-os de seus direitos. Devido às condições sanitárias a que os privados de liberdade estão expostos e da restrição de visitas de familiares e amigos nesse momento da pandemia, eles também estão sujeitos a maiores dificuldade psicológicas.
O acompanhamento individualizado da pena, de acordo com a Lei de Execução Penal, deve ser feito por uma comissão, composta por um psicólogo, um assistente social, um psiquiatra, dois chefes de serviço e presidida pelo diretor da unidade prisional. A superlotação nos presídios e o descaso do estado brasileiro impede que essa lei seja cumprida da forma adequada. Para a psicóloga e Doutoranda em Psicologia Social e Integrante do Fórum Permanente de Saúde do Sistema Penitenciário, Luisa Bertrami, os problemas enfrentados nas penitenciárias durante a pandemia no Brasil são constantes e antigos, apenas sendo agravados nesse momento: “O único modo de fazer qualquer coisa que afete positivamente a vida dos presos é o desencarceramento. Precisamos tirar pessoas da prisão. Metade dos presos brasileiros são provisórios, ou seja, nem foram condenados. A maioria está presa por tráfico de drogas e crimes contra o patrimônio, muitas vezes não violentos. Os problemas que vemos hoje no contexto do Covid-19 nas prisões se relacionam com o fato de que prendemos muito. Precisamos parar de prender”, defende ela.
O cenário de isolamento social fez com que fosse necessária uma adaptação à nova rotina e novas formas de convívio, principalmente à distância. “Na prisão, isso é intensificado pelo fato de que há pouca transparência em relação a como o vírus tem afetado as unidades. Isso significa uma ansiedade imensa, não só para quem está lá dentro, mas para as famílias aqui fora, que não conseguem saber exatamente o quão expostos seus familiares estão lá dentro. Além disso, a impossibilidade de receber visitas certamente afeta muito a saúde mental, considerando que a presença da família torna a prisão um pouco mais suportável, e é pela família que entram os itens necessários para uma sobrevivência mínima”, comenta Luisa.
Após a pressão de ativistas pelos Direitos Humanos sobre o Supremo Tribunal Federal por medidas de contenção ao avanço da doença nos presídios, o ministro Marco Aurélio citou a “situação precária e desumana dos presídios e penitenciárias” do país e sugeriu medidas preventivas aos juízes de execução penal brasileiros. As medidas de contenção foram acionadas a partir de normativas, como a do Conselho Nacional de Justiça, inclusive se valendo da prerrogativa do desencarceramento nas condições previstas em lei e para um conjunto de pessoas em situação de vulnerabilidade e risco. Suspenderam as visitas sociais e íntimas, a entrada de itens de alimentação, remédios, vestuário, de higiene e limpeza encaminhados por familiares, entre outras medidas.
Rogéria Martins, Bacharel em Ciências Sociais, Doutora em Políticas Públicas, com Pós-Doutoramento investigando encarceramento feminino e atualmente coordenadora do Laboratório de Modalidade Diferenciada de Ensino e do Núcleo de Estudos de Violência e Direitos Humanos (NEVIDH) da Universidade Federal de Juiz de Fora, afirma: “A situação seria louvável, se as condições de higiene e limpeza nesses espaços fossem razoáveis. Mas não sendo, abre um precedente preocupante ainda pior: a falta de acesso a material de higiene pessoal, remédios advindos das famílias, torna essa população ainda mais desprovida desses itens básicos. Por outro lado, a escassez e o racionamento de água, de assistência médica e a alimentação de baixo valor nutricional, ou, no limite, em péssimas condições de higiene, materializam os obstáculos para cumprir as medidas de prevenção básica da doença”.
O Brasil tem a terceira maior população carcerária do mundo, com maior taxa de crescimento da população prisional. Segundo dados do Monitor da Violência, são mais de 773 mil presos em regime fechado, enquanto nos presídios a capacidade é de 415 mil. Além disso, essa população encarcerada é constituída, em sua maioria, por pessoas negras, jovens, pobres e com baixa escolaridade, que respondem por crimes contra o patrimônio (roubos e furtos) e pela lei de drogas (porte ou tráfico). “É importante revelar que dentro da prisão podemos empreender conceitos diferenciados de uma penalidade, como a do trabalho e educação, como mecanismos de ressocialização: numa hora como essa, em que todos estão se cobrindo de esforços para dar conta de uma situação sem precedentes na história, ações como a do Governo de São Paulo, que coloca a população prisional para confeccionar máscaras, parece atender a um conjunto de medidas criativas, frente às medidas conservadoras que assolam esses espaços. O universo prisional é uma agência que está custodiando vidas, com sua total responsabilidade”, comenta Rogéria.
Na tentativa de contenção do Coronavírus nos presídios, o Conselho Nacional de Justiça emitiu uma nota de recomendação a tribunais e magistrados para adoção de medidas que consistem, principalmente, na “redução do fluxo de ingresso no sistema prisional e socioeducativo; medidas de prevenção na realização de audiências judiciais nos fóruns; suspensão excepcional da audiência de custódia, mantida a análise de todas as prisões em flagrante realizadas; ação conjunta com os Executivos locais na elaboração de planos de contingência; e suporte aos planos de contingência deliberados pelas administrações penitenciárias dos estados em relação às visitas”. Essa recomendação, de n° 62, visa ao cumprimento de leis já existentes e que apresentam falhas no seu cumprimento, como o Art. 4º, que pede “a reavaliação das prisões provisórias, nos termos do art. 316, do Código de Processo Penal”.
A advogada e apoiadora de ONG’s e movimentos sociais, Thais Justen, explica: “Se esse preso provisório não tentou fugir ou não ameaçou uma vítima, ele poderia estar respondendo em liberdade. Há outras maneiras de garantia de que vai haver resposta ao crime, por meio de fiança ou restrições para sair do estado em que vive, por exemplo. Além disso, pessoas com determinada idade, gestantes, mães de crianças pequenas, entre outros, podem ter direito à prisão domiciliar após análise do caso por um juiz”. Entretanto, a recomendação do CNJ não foi observada, e foi necessária uma decisão do STF para o caso de desencarceramento. Em meio a tantos ataques que o STF vem sofrendo diariamente por meio de atos antidemocráticos que pedem seu fechamento, Thais lembra a importância do órgão governamental: “O próprio sistema tenta fazer com que a lei seja cumprida e quando não é cumprida, é necessário que o STF se posicione para que isso aconteça”, afirma a advogada.

Rogéria Martins é Bacharel e Licenciada em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1998), Mestre em Educação pela Universidade Federal da Bahia (2007), Doutora em Políticas Públicas, no Centro de Ciências Sociais e Humanidades, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, com Pós-Doutoramento na Universidade do Porto, no Instituto de Sociologia, investigando encarceramento. Atualmente, é professora do Departamento de Ciências Sociais, na Universidade Federal de Juiz de Fora – MG. É membro do Núcleo de Estudos em Violência e Direitos Humanos, coordenando o Laboratório de Modalidades Diferenciada de Ensino. Membro Associado da Rede de Pesquisadores sobre Privação e Restrição de Liberdade. (Foto: Arquivo Pessoal)

Luisa Bertrami D’Angelo é Doutoranda em Psicologia Social na Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Psicóloga e Integrante do Fórum Permanente de Saúde do Sistema Penitenciário. (Foto: Arquivo Pessoal)

Thais Justen Gomes é graduada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), pós-graduada pela Cândido Mendes e pela FACHA. Ex-advogada do Centro de Direitos Humanos (CDDH) Petrópolis, ex-advogada do Cram Petrópolis, ex-advogada da ADUR-RJ (Associação de Docentes da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro). Atualmente, é advogada autônoma e colaboradora de ONGs e movimentos populares. (Foto: Arquivo Pessoal)
*Matéria produzida pela aluna Luiza Caire para a disciplina Teoria e Técnica da Notícia, ministrada pela professora Maristela Fittipaldi.
PARABÉNS, Luiza! Bjs!