No alto de uma ladeira, em um espaço de aprendizado em meio ao verde que circunda o bairro do Cosme Velho, na Zona Sul carioca, se reúnem alguns homens. De início frios e tímidos, sem muito contato entre si, eles aguardam na varanda do casarão que abriga o encontro, onde aos poucos vão chegando mais pessoas. Vestida de branco, uma figura se sobressai. Dando um abraço em todos que chegam e de fala aconchegante, Surian dos Santos, de 34 anos, é quem promove o evento intitulado ‘Solar: Círculo de Homens’. A ideia do encontro é falar abertamente sobre questões masculinas modernas, colocando os participantes em contato com novos significados da masculinidade, em busca de uma cultura de parceria e mais cuidado com a vida.
Quem há anos facilita esse tipo de reunião, geralmente entre mulheres, mas também com espaço aos homens, é a terapeuta holística, Bebel Clark (33). Atenta às questões de gênero da atualidade, ela acredita que os homens ainda são muito afetados pelo senso de que precisam de status e poder para serem socialmente reconhecidos. Segundo ela, eles possuem uma tendência a se fixarem nas aparências, o que acarreta consequências emocionais. “Uma certa dificuldade de ser vulnerável, dificuldade de pedir ajuda, dificuldade de reconhecer que precisam de apoio e ás vezes uma dificuldade, também, de criar vínculos com outros homens, nesse lugar de fragilidade”, analisa Clark.
Bebel pensa que levar aos homens a energia feminina da reflexão seja um meio de resolução dessas questões, já que entende ser importante que eles possam refletir sobre qual papel querem ocupar na sociedade e nas suas vidas: “Os homens estão cansados de vestir máscaras, existem muito estigmas entre os homens”. Segundo ela, uma masculinidade plena é aquela que pode integrar o masculino e o feminino de cada homem, indo contra o machismo que afeta ambos os gêneros. “Desconstruindo esse sistema patriarcal e esse machismo, homens e mulheres serão mais felizes”.

Cada vez mais homens seguem o conselho de Bebel e buscam desconstruir seus dogmas e preconceitos, superar o machismo e redefinir sua ideia de masculinidade. O conceito vem se transformando com o avanço dos tempos, tentando abraçar mais referências e possibilidades e deixar de ser tão limitante, batendo de frente com o que tem sido chamado de ‘masculinidade tóxica’. A busca por uma melhor expressão do masculino é o que motivou Surian a conceber e realizar o ‘Círculo de Homens’.
Em outros campos de trabalho, Surian promovia cursos em que eram abertas rodas de diálogo, e com isso percebeu o quanto a questão de gênero era latente.
“Em rodas sobre gênero era muito quente o tema de como o patriarcado tem oprimido todo mundo, no sentido de que homens e mulheres estavam cansados dessas opressões e das heranças culturais que têm recebido. Percebi que estavam todos insatisfeitos com as definições, impostas, sobre o que é ser um homem e o que é ser uma mulher”, conta ele.
“Eu lembro de ter perguntado em umas três rodas dessas, ‘O que é uma masculinidade bem orientada? A gente já sabe todos os males que causam essa expressão masculina opressora, mas e outro lado? O que a gente quer?’ e ninguém sabia dizer”, diz Surian ao relembrar os motivos que o levaram a iniciar os encontros.
Ele inicia a cerimônia convidando a todos a tirarem seus sapatos e a enxergarem o círculo como algo sagrado, antes mesmo de entrarem nele, deixando do lado de fora também seus celulares e inibições. Após se sentarem, os homens são estimulados a refletir e conversar sobre suas referências de masculinidade.
Entre os participantes, um caso chama atenção: a relação de um senhor de barba branca e um jovem de barba escura, pai e filho, juntos. O senhor de barba branca é Alcione Gonçalves, de 61 anos, Capitão de Mar e Guerra ‘da reserva’ (aposentado) e professor da Escola de Formação da Marinha Mercante.

O militar foi levado lá a primeira vez pelo filho, o músico David Gonçalves. Na visão dele, o evento é um desbravador do sagrado masculino, no intuito de fazer com que os homens do século XXI se descubram e consigam rever seus conceitos, para que, assim, a vida de todos melhore. Pai de outros três filhos, criados, segundo ele, com certo “rigor e disciplina”, Alcione afirma que sua ideia de masculinidade mudou bastante da juventude até hoje, mas nunca esteve tão plena.
“Antigamente, quando era mais jovem, o masculino realmente representava muito a questão da força, do provedor. Ao longo do tempo eu consegui fazer com que essa masculinidade fosse flexibilizada, fosse amenizada. Consegui fazer com que a sensibilidade fizesse parte da minha vida, e tenho excelente relação com todos os meus filhos. Acho que minha masculinidade está bem resolvida”, diz Alcione.
O ator Ricardo Gadelha (35), que participa do Círculo de Homens pela terceira vez, fez questão de falar sobre suas experiências. “Eu não sabia que existiam círculos de homens, fiquei muito curioso quando soube. Eu tinha muitos preconceitos, uma imagem muito ignorante. Aí, cheguei aqui e me surpreendi muito positivamente com essa condução muito sensível, com a atmosfera”, revela Ricardo.

Com uma postura simpática e a fala aberta e honesta, Ricardo também relata sua percepção sobre a posição do homem na sociedade atual.
“Ser homem, hoje, eu acho que é um desafio. Ser um homem razoável, ser um homem que não está rendido às narrativas totalmente precárias que se consolidaram nos últimos séculos. Espero que seja um desafio abraçado pelo maior número possível de homens. Para que deixe de ser um ser um desafio para nós, e para que deixe de ser um desafio para as mulheres conviverem conosco”.
A psicóloga pós-graduada em neuropsicologia, Camila Carvalho (34), atesta como o conceito de masculino e de masculinidade, que fazem parte do senso comum e do imaginário social coletivo, afetam e desafiam os homens: “Críticas sociais e cobranças culturais referentes à família, filhos, relacionamentos, sexualidade, disfunções sexuais e autoestima são queixas constantes em consultório”. De acordo com ela, as possíveis consequências de toda essa pressão podem incluir até mesmo o desenvolvimento do transtorno de ansiedade.
O caminho para se desvencilhar disso, segundo Camila, é o autoconhecimento. Baseado em sua vivência profissional, Surian parece concordar, e ressalta mais uma vez o valor do seu trabalho no círculo:
“Eu via que tinha uma falta de repertório muito grande sobre que tipo de homem a gente quer ver mais no mundo. Então comecei, com amigos, a pensar um círculo de homens. Eu me senti muito chamado a fazer isso. Já trabalho como facilitador de grupos assim há mais de uma década, e para mim é um tema do desenvolvimento humano maravilhoso”, diz Surian.

Um dos amigos que começou ao lado dele como apoiador na propostas e ofícios dos círculos foi Ticiano Lima (34), presente no último encontro. Ele conta que seu envolvimento com os eventos nasceu da vontade de encontrar parceiros e amigos que estivessem pensando e problematizando a tão falada “masculinidade tóxica”.
“Faço parte de uma geração que viveu o processo de abandono parental por parte da figura do pai. Como faço parte dessa estatística, a presença de outros homens que também discutissem essas relações sempre me foi muito importante”, diz Ticiano.
No espaço sagrado para Ticiano, Surian e tantos outros homens, todos se levantam, se abraçam, e o círculo se encerra com uma foto.
No fim, depois de compartilharem juntos de um momento único de encontro com a potência e vulnerabilidade do seu masculino, de frente com suas próprias questões, e ainda envoltos pelos sentimentos aflorados no círculo, todos confraternizam em volta da mesa da ceia organizada colaborativamente.
Em um clima fraterno e descontraído, entre risadas e reflexões, conversam como longos amigos, com escuta e apoio mútuos, deixando repleta de calor a mesma varanda do casarão no Cosme Velho, antes fria.

Para saber mais
No Netflix, um filme documentário também ajuda a observar o comportamento histórico passado a meninos e homens: se emocionar e chorar é ‘coisa de mulher’. “The mask you live in” defende que a ideia do ‘macho dominante’ afeta psicologicamente crianças, jovens que, no futuro, se tornam adultos. “Eu diria que a maior emoção sentida pelos homens americanos é a ansiedade. Por que? Porque você precisa provar sua masculinidade o tempo todo”, diz Michael Kimmel, Professor de Sociologia, durante entrevista do filme.
Criador do site “Papo de Homem” e do documentário “Precisamos falar com os homens?”, que está disponível integralmente no YouTube, Guilherme Nascimento Valadares escreveu uma série de dicas sobre como círculos masculinos podem e devem ser formados. “O movimento é real. Apenas não está sendo contado na mídia ainda”, disse ele em seu texto.
Um grupo de homens, um dos mais antigos do Brasil, se reúne também mensalmente em diversas cidades do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, além das capitais de São Paulo e Rio. É o movimento “Guerreiros do Coração”, que surgiu em 1993, em terras gaúchas, e também tem a proposta de ser um espaço de fortalecimento, para “homens aprendendo a ser homens, juntos”.
Encontre os grupos:
Solar, Círculo de Homens
Guerreiros do Coração
Papo de Homem
Matheus Marques (7º período)
Parabéns Matheus, considerei excelente o nível profissional da reportagem! Parabéns também por divulgar, de forma clara e transparente, ações positivas existentes em nossa sociedade, elaboradas e executadas por Surian e Ticiano, que são completamente desconhecidas dessa mesma sociedade! Parabéns por partilhar iniciativa valiosa e que consegue transformar nosso mundo para melhor!
Parabéns pelo brilhantismo da matéria, Matheus Marques. A reportagem explicitou de forma clara, o que dificilmente é abordado pela mídia e que constantemente recebo em consultório. A participação na matéria, foi uma oportunidade de informar aos homens que sentir é HUMANO e não há nenhum problema nisso. Os homens sentem…e como sentem!!!!