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De 1968 a 2018: a situação do “menor de idade” no Brasil

“Uma vez, deixei a minha namorada na fila para comprar ingresso para um show. Enquanto isso, fui caminhar pelo shopping. Ao voltar e falar com a minha namorada, o segurança me confundiu com um cambista de ingresso e começou a interpelar, aos berros, minha namorada. Perguntava se eu estava incomodando, se eu não tinha vergonha. A minha namorada ficou estarrecida com tal situação”. O mais curioso: o segurança também era negro.

O desabafo é de Paulo da Cruz, 32 anos, “boa praça”, bancário, morador do bairro de Vila Isabel e negro. E essa não foi a primeira vez que ele foi vítima de preconceito. Diante dessa situação “corriqueira”, Paulo se preocupa com a emenda de redução da maioridade, que propõe a diminuição da idade penal de 18 para 16 anos. Para ele, a aprovação do projeto pode contribuir para o aumento da desigualdade social, atingindo principalmente jovens negros e pobres.

Mas essas questões não começaram agora. Os acontecimentos ocorridos em maio de 1968 já anunciavam, mesmo que de forma velada, o que viria pela frente. Foi nessa década que os movimentos sociais ganharam força e a proteção da criança e do adolescente, principalmente dos menos favorecidos, virou uma bandeira.

No entanto, de acordo com a advogada Renata Almeida, mesmo com grupos que lutavam por ideais importantes e boas intenções, grande parte da população ainda tinha medo da insegurança e enaltecia o endurecimento de penas como solução na contenção da violência urbana, fosse para qualquer idade. Inevitavelmente, isso recaía mais facilmente sob os jovens negros e pobres. E, assim sendo, pouco mais de dez anos depois, em 1979, o segundo Código de Menores é promulgado segregando, ainda mais, meninos e jovens.

As diferenças sociais no país afetam todas as classes. Cada vez mais, adolescentes de baixa renda são seduzidos pelo mundo crime. Isso porque o problema não está na questão de reduzir ou não a idade penal, e sim na falta de punição de maneira efetiva conforme previsto em lei. “Não se observa o cumprimento das medidas socioeducativas estabelecidas pelo ECA. Os bandidos aproveitam que não há cumprimento eficaz das medidas estabelecidas e utilizam menores na prática de crimes”, afirmou o bancário vítima de preconceito. Acreditando que não serão punidos, jovens são convocados a participar de movimentos ilegais.

Assim como Paulo, muitas pessoas entendem que as leis não funcionam. Entretanto, elas possuem opiniões diferentes e se posicionam a favor da redução da maioridade penal: aproximadamente 87% da população, de acordo com pesquisa do site Datafolha.

Em coro com grande parte da população, Maria da Silva, 29 anos, policial militar no Rio de Janeiro, também crê no projeto de alteração da idade penal mínima como uma solução para a melhora da segurança pública no estado, tendo em vista que adolescentes de 16 anos já teriam discernimento suficiente para responder por seus atos. No dia a dia de trabalho, a policial diz que a medida pode ajudar a diminuir o índice de criminalidade, já que um possível infrator saberá que, ao transgredir a lei, não ficará impune.

Mesmo de acordo com a proposta, a policial alerta que se esses adolescentes forem inseridos no atual sistema carcerário sem nenhuma reforma, a criminalidade e a desigualdade social podem aumentar. “Mas estamos falando de uma guerra do bem contra o mal, por isso devemos pensar em uma solução a curto prazo, que seria aumentar a punição para os infratores mesmo que essa desigualdade acentuasse”, disse Maria.

Contudo, há opiniões distintas dentro da corporação policial. O sargento João Queiroz, 40 anos, que também é pastor, se posiciona contrariamente, pois a questão não estaria na idade escolhida para inimputabilidade, mas em oferecer melhores condições nas áreas de domínio do tráfico de drogas, ofuscando a sedução que ele oferece. Para ele, a alteração não afetaria o seu trabalho. “Seria indiferente porque não oferece grandes mudanças na abordagem e na condução do preso. E sim quando ele é apresentado à autoridade judiciária”, afirma.

Com pensamento similar ao de Paulo, o sargento acredita que a proposta poderá aumentar a desigualdade social, pois irá inflar a população carcerária. “Quanto mais novo ele for colocado no convívio de marginais de maior idade, menor a capacidade de se recuperar”, disse João.

Da mesma forma, especialistas se colocam contra e enfatizam a sua posição. A pesquisadora Letícia Cantarela Matheus, professora doutora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, coordenadora do NEO – Núcleo de Estudos do Ódio e autora do livro “Narrativas do medo”, afirma que os meninos já são utilizados pelo tráfico porque são inimputáveis. Se um garoto de 16 anos for preso, é o de 14 anos que vai fazer o mesmo serviço. “Vai ficando até mais cruel! Você vai reduzir isso até que idade? Daqui a pouco vão usar mão de obra de nove anos de idade? Você produz o encarceramento de crianças”, justificou a pesquisadora.

A diminuição da idade penal estaria diretamente relacionada com a desigualdade social, pois esses rapazes que vão para o tráfico poderiam estudar para alavancar economicamente as famílias deles. No entanto, uma vez retirados desse meio produtivo podem ir para a cadeia, tornando-se um caso praticamente perdido.  Entendendo que a situação carcerária é calamitosa e a ressocialização dificílima, é uma mão de obra que se perdeu. A rigor, o jovem, a família e a comunidade onde moram vão empobrecendo, ficando cada vez mais miseráveis.

Pesquisadores de outras universidades também se opõem à redução da maioridade penal. Angélica Fontella, 30 anos, mestranda da UFRJ e pesquisadora de mídia e ódio, que também faz parte do NEO, se apresenta terminantemente contra o projeto. Para ela, o encarceramento é uma manutenção da desigualdade social, assim como a ampliação dessa faixa etária tende a aumentar o problema. No Brasil, o cárcere é uma instituição voltada para negros e pobres, muitas vezes ainda sem julgamento, que vivem em situação precária. “Submeter crianças a esse tipo de realidade não pode ser positivo”, ressaltou a estudiosa.

Para uma análise mais profunda, Angélica afirma que é necessário levar em conta a formação estrutural do país, o histórico de grande violência, com guerras por conquista de território e muitos anos de escravidão. “Nós somos uma sociedade extremamente violenta. E eu vejo a redução da maioridade penal como uma resposta muito violenta a uma situação de desigualdade social. A mídia quando se abstém de discutir com profundidade o que leva a essa desigualdade social, só tem a contribuir para que a gente permaneça nessa esteira de violência e de pensamento violento”.

Corroborando o posicionamento das pesquisadoras sobre a ineficácia da medida, estudos da UNICEF revelam que 79% dos países pesquisados (total de 42) adotam a maioridade penal de 18 anos. Alguns deles reduziram a idade em determinado momento, mas voltaram atrás, uma vez que não houve diminuição no índice de criminalidade. Os dados apontam que o tema precisa ser mais debatido pelas sociedades que pretendem implementar esse tipo de medida como solução para o problema da violência urbana.


 Érica Fortuna 

Reportagem desenvolvida para a disciplina de Oficina Multimídia

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