Comportamento Crônica Geral

Lentes de contato Didion

Em sua nova crônica, o escritor narra seu crescimento pessoal a partir da leitura dos escritos de Joan Didion.

Por João Agner

Ouvi o nome de Joan Didion pela primeira vez no primeiro período de universidade, em alguma das aulas. Não me lembro qual professor foi, gostaria de lembrar. Achei interessante ver como uma mulher foi uma força transformadora no jornalismo em tempos que não favoreciam sua presença na área, ou até na sociedade. Feminista, curiosa, valente. A força daquela senhora de aparência frágil me conquistou. Me lembrei de já ter a visto por fotos, o icônico ensaio com o Corvette Stingray, fotografada por Julian Wasser em 1968. 

Cinco meses depois, ela faleceu. 

Comprei meu primeiro livro da Didion uma semana antes que falecesse, mas não o li imediatamente. Só consegui pegar nele uns meses depois, impactado pela notícia. Observei bem a capa alaranjada da edição brasileira de “O ano do pensamento mágico” antes de abrí-la pela primeira vez. 

Ninguém nunca me fez sentir o que senti lendo Didion. Não sei se era o tom geral de pertencimento em um retrato tão voraz e autêntico da depressão e do luto ou nosso senso comum de curiosidade pelo que nos rodeia, não consegui ver claramente. 

Joan tem um senso de escrita único. Uma cadência própria, estrutura frasal de tirar o fôlego, um ponto de vista inigualável. Frequentemente eu me encontrava estático após ler algumas passagens de seus textos. Mais do que inveja, aquilo me motivava a escrever. Seu forte, como a mesma dizia, é a não-ficção. Seu legado se resume à sua coleção de ensaios, e nem a própria gostava muito de comentar sobre suas criações ficcionais. 

“Escrever ficção é um processo estressante, uma ocasião diária que detesto por pelo menos a primeira parte do romance, e às vezes, por todo o processo”, ela contou em sua célebre entrevista ao “Paris Review” em 2006. “Escrever não-ficção é mais como uma escultura, sobre dar forma à sua pesquisa. Romances são como pinturas, especificamente aquarela. Cada pincelada feita, você deve seguí-la. É claro que você pode reescrever, mas as pinceladas originais ainda estão na textura do texto”.

Um dos aspectos mais inspiradores e ímpares de sua oratória é sua total aversão em se colocar em segundo plano. Didion quebra a quarta parede se direcionando em primeira pessoa em seus textos. O jornalismo, muitas vezes, exige que você não exista, mas Didion se recusa a isso. Dessa forma, Joan coloca luz em sua posição como mulher falante e mulher a ser ouvida, com todos os atributos que essa posição merece, pelo seu retrato único da perspectiva de uma mulher. Em um de meus textos favoritos, “Alcançando a serenidade”, Didion relata uma visita a uma reunião de Jogadores Anônimos. Ela não tem medo de ser chata ou desagradável; conta tudo o que a agrada e desagrada (“Saí rápido de lá, antes que mais alguém dissesse a palavra ‘serenidade’ de novo”) e toda sua análise da situação, sem rodeios. 

Didon me ensinou tudo que sei sobre auto-reflexão na escrita. Eu, ridiculamente tímido, nunca soube me expressar bem, nem mesmo pela escrita, o que sempre me frustrou. Sempre recorri à ficção, tentando mascarar dramas em personagens e arcos, mas nunca me direcionar como vítima das dores. Passei a me encarar de forma diferente, no papel e fora. Me projeto como quero ser visto, ou pelo menos tento, e escrevo o que quero que saibam. Meus relatos são filtrados, me preservo me apoiando na precisão. Acima de tudo, ela me ensinou sobre privacidade. Eu costumava doar tanto de mim para o texto que às vezes eu filosofava sobre o que sobrava de mim para mim mesmo, o que é parte da razão pela qual demorei tanto tempo para começar a compartilhar meus escritos. Tudo parecia invasivo demais, e eu não tinha uma boa mão para peneirar. A total nudez do meu inconsciente não é necessária para que minha honestidade seja validada. Conte o que precisa ser dito, e seja honesto na sua perspectiva — esse foi o maior ensinamento que Didion me trouxe. 

(Foto: Jill Krementz)

Celebrando o primeiro aniversário de sua morte, a cantora Maggie Rogers disse à “Vanity Fair” que “mais que fazer um álbum como ‘O Álbum Branco’, talvez o que importe mesmo seja fazer um disco que faça alguém escrever um ensaio como ‘O Álbum Branco’”. Pouco antes, ela disse: “os artistas que nos transformam em artistas são como família”.

Joan me remete a minha avó. Não a que está viva, mas a que nunca conheci. A mãe do meu pai faleceu muito antes dos meus pais cogitarem uma gravidez. Sou ciente dessa inevitabilidade, pessoas morrem todos os dias. Sempre me imagino como seria a convivência com ela, o que ela me ensinaria. Não sei muito sobre ela, dona Vânia, além do pouco que me contam ou do que pesco de conversas entre meu pai e sua irmã. Meu pai não é muito comunicativo, principalmente ao relembrar o passado, mas minha tia ama falar sobre ela e suas aventuras na Tijuca. Me dizem como ela era calma, chique, querida no prédio em que moravam. É a imagem que tenho de Joan. Assim como a avó que nunca conheci, a artista na qual só tive conhecimento postumamente evoca o mesmo vazio. Como teriam sido meus piores anos com seus escritos ao meu lado? Como eu me comunicaria sem o auxílio de sentimentos colocados tão precisamente no papel como ela fez? Como seria minha vida com ela presente mais cedo?

Mais importante que isso é pensar em minha vida agora que a conheço, depois de leituras, documentários, entrevistas, relatos e retratos. Escrevo melhor, penso melhor, reflito constantemente, sou um anotador compulsivo, comprei um par de óculos escuros. Encaro o mundo com os olhos de quem o documenta, busco inspiração em feições durante conversas, interações mínimas no metrô e caminhadas pela Saens Pena. É como se um oculista tivesse me recomendado lentes de contato, e no campo de grau, a indicação é Didion. Veja o mundo como ela.

Sou uma pessoa de poucas crenças. Não sou religioso, não tenho boa relação com a igreja e mal sei se acredito em Deus, mas acredito na arte. Acredito no impacto da arte, até porque sou a prova viva disso. Tomando a expressão literalmente, estou vivo pela arte. Quando me encontrava em meu momento mais obscuro, fui capaz de me enxergar na melodia de uma canção. Acredito no valor da arte na formação de quem somos, nas experiências transformadoras que vêm a partir da nossa interação com a mídia, seja ela sonora, visual ou escrita. Mais do que isso, me impressiona ver como mudamos por decorrência desse contato. Eu quero isso. 

Costumava achar arrogante dizer que queria ser como meus artistas favoritos. Nunca quis dizer em nível de fama e fortuna ou relevância, mas por buscar por esse sentimento de quem se enxerga em seu trabalho. Quero produzir algo que conforte alguém. Quero produzir algo que faça alguém produzir algo. “Fazer um disco que faça alguém escrever um ensaio como ‘O Álbum Branco’”, como Maggie Rogers disse. Gostaria de ser para alguém quem Didion é para mim. 

“Contamos histórias para poder viver” é uma de suas frases mais célebres. “Vivemos, sobretudo se somos escritores, pela imposição de uma linha narrativa para imagens discrepantes, pelas ‘ideias’ com as quais aprendemos a congelar a fantasmagoria que constitui nossa experiência real. Ou, ao menos, fazemos isso por um tempo”, ela continua. 

Eu consigo sentir sua influência em cada centímetro da minha escrita, mas vai além disso. É sobre quem sou, e quem quero ser, agora que tenho as “lentes de contato Didion”.

Foto de capa: Julian Wasser

Crônica de João Agner, com edição de texto de Daniela Oliveira

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3 comentários em “Lentes de contato Didion

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