Comportamento Crônica

Como o orgulho nasceu em mim 

Em sua crônica de estreia, Gabriel Ribeiro conta como descobriu o orgulho que tem por ser gay.

Entrar no Twitter no início da semana é sempre uma surpresa. Normalmente é nesse momento que a bolha gay vai decidir o assunto de discussão da vez, algo que não muda em nada a vida de ninguém, a não ser que seja o cancelamento de uma mulher preta eliminada do principal reality show do país com recorde de rejeição. E mesmo assim, provavelmente ninguém vai lembrar disso depois de no máximo três meses, e ela não vai ouvir na rua nada do que lerá na internet. 

Surpreendentemente, a pauta dessa semana não foi tão inútil; uma thread com a foto de um armário aberto com a porta violada e vazio por dentro, preenchido apenas pelas cores da bandeira LGBTQIAPN+ antiga, sinalizava que o texto que acompanhava falava sobre como você tinha saído do armário, ou como você teria sido arrancado dele.  Olhar para aquela imagem me deixou muito pensativo. 

Acho que não dá pra considerar que eu tenha sido tirado a força do armário, e que todas as “brincadeiras” e “piadas” que eu ouvi na escola eram na verdade um alerta de que eu estava desviando do caminho que era esperado que eu trilhasse. As crianças estavam prontas para me dizer que eu era diferente, e que por isso eu deveria ser tratado de uma maneira muito diferente também. Hoje eu sei que foi quando eu levei um soco na cara, no quinto ano, que eu tinha descoberto a homofobia antes mesmo de saber o que era ser gay. 

Na época, a diretora da escola tentou abafar o caso de qualquer jeito e ainda disse que eu também estava muito errado porque, depois que o menino saiu do outro lado da sala e me deu um soco no meio da aula de música só porque a minha voz era muito chata, eu xinguei ele de todos os palavrões que eu conhecia, e disse o quanto a família dele não se importava com ele, porque antes de eu saber o que era ser gay, eu também já tinha descoberto a vingança. 

Depois desses acontecimentos eu já tinha entendido que eu não podia simplesmente acordar e sair por aí vivendo como uma pessoa normal, porque o simples fato de ser eu implicava com a minha existência. Se eu queria ter amigos na escola nova, não ser alvo de piadas ou apanhar outra vez, eu precisava seguir as regras melhor do que ninguém, qualquer ato falho poderia significar punição eterna. 

Daí em diante, minhas memórias vem como um grande borrão. Não consigo me lembrar exatamente o que eu fazia ou sobre o que conversava com as minhas amigas. Só sei que enquanto elas saiam para fazer coisas que não tinham nenhum tipo de relação com os estudos, eu ficava em casa lutando contra mim mesmo. Não que eu quisesse sair todos os fins de semana com elas, até porque tenho alma e animação de uma senhora, mas eu estava deixando de viver, de simplesmente fazer coisas normais, de adolescentes normais, em um lugar normal. Tudo isso porque eu aceitei que eu não era normal. 

Até hoje eu tenho horror a aceitação. Ninguém que realmente gosta do que está acontecendo fala que aceita; se fala que ama, que respeita, que gosta, que adora, mas só se aceita algo que não se consegue engolir, que não se tem outra alternativa a não ser aceitar. E foi exatamente isso que eu fiz durante muitos anos da minha vida. Aceitei que o que me disseram, no momento em que tentei ser eu mesmo para o mundo, era a verdade absoluta, e que não existiam alternativas para aquilo. Eu aceitei que não deveria ser eu, mesmo sem saber o que eu era exatamente. 

É triste pensar que eu falhei, que eu deixei de ser eu por anos, e que mesmo assim nunca fui visto socialmente como uma pessoa comum. Ao mesmo tempo, é maravilhoso saber que eu falhei e que lá no fundo eu conseguia mostrar ao mundo quem eu era. Depois de entender o que era ser gay e contar isso pra mim mesmo, eu contei pras minhas amigas. Foi em um dia dos namorados quando uma amiga minha virou pra mim e me perguntou, “você é do vale?” e eu respondi pela primeira vez que sim. Depois eu contei pra minha terapeuta, e logo em seguida pra minha mãe, meu pai só ficou sabendo uns 5 meses depois disso. Nessas três últimas, entre muitas coisas que eu fiz, em todas elas eu chorei e disse que eu continuaria sendo eu, que nada iria mudar. 

Óbvio que era mentira, tudo ia mudar muitas vezes, como sempre mudou, independente de sexualidade. Mas o que nasceu para o mundo nesse momento, foi o meu orgulho, que para mim já tinha nascido a muito tempo, já que ele não tem nada a ver com o fato de se assumir, e sim de se entender.

Você, caro leitor cisgênero e heterossexual, pode estar se perguntando como ter orgulho de algo que faz você ser tratado de maneira diferente pelos outros, apanhar na rua e receber olhares estranhos todos os dias. A resposta é muito simples: quem me trata de maneira diferente é você, quem me bate e me mata é você, quem me olha torto é você. Eu sobrevivo. Levantar todos os dias sabendo que partes desse rito cruel vão acontecer é algo que merece muito orgulho. Desviar a norma é um ato de muita coragem. 

A grande verdade é que o orgulho nasceu em mim no momento em que eu nasci, não consigo separar uma coisa da outra. Da mesma forma que eu nasci gay, eu nasci com orgulho. Meu orgulho foi impedido pela falta de vergonha de todos que me fizeram sofrer, direta ou indiretamente. Gostaria de saber que agora essas pessoas tenham descoberto a vergonha, mesmo sabendo que nenhum sentimento por parte delas será equivalente ao meu durante esses anos todos, mas prefiro gastar meu tempo pensando em mim e em todes nós, membros do “vale”, LGBTs, orgulhosos. Já passou da hora de protagonizarmos as nossas histórias. A minha história é sim atravessada pela dor, mas é protagonizada pelo orgulho. 

PS: Se você é uma pessoa que ainda não descobriu seu orgulho, fique tranquila, uma hora ele vai aparecer. Com certeza ele está aí dentro de você, guardado em um lugar muito especial. Talvez agora pareça que tudo será ruim pra sempre, mas tudo vai ficar bem. Tome o seu tempo, não se apresse por conta do tempo dos outros. O orgulho é também uma jornada, um processo que exige manutenção contínua, então busque ajuda se achar que precisa, conte só para as pessoas que você confia, ou então não conte nada a ninguém, nunca, deixe que as pessoas descubram. Lembre-se que nós já estamos desviando da regra, do caminho que era esperado, não existe jeito certo de ser você. Se respeite e se ame. Enquanto você não descobre o seu orgulho, eu me orgulho por todes nós!

Foto de Capa: Fabio Rodrigues-Pozzebom/Agência Brasil

Crônica por Gabriel Ribeiro, com edição de texto de João Agner.

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12 comentários em “Como o orgulho nasceu em mim 

  1. Avatar de Larissa Martins
    Larissa Martins

    Você é uma pessoa maravilhosa ❤ tenho muito orgulho de vc!

  2. Avatar de Vitor Dark

    Muito orgulhoso de ter lido isso.
    Fomos feridas, humilhadase tivemos nossa liberdade reprimida. Mas o nosso orgulho prevalece sobre as inconsistências psíquicas dessa sociedade nojenta. Peguem os pincéis e vamos colorir 🌈❤️

    • Avatar de gabriel ribeiro
      gabriel ribeiro

      Sim, nosso orgulho é nossa arma mais poderosa, nossa principal forma de resistência. Obrigado pelo comentário, fico muito feliz que tenha gostado do texto. Vamos colorir o mundo!

  3. Avatar de Bárbara G.

    Linda crônica, Gabriel! É na comunidade e na representação que nós encontramos o orgulho e a vontade de seguir em frente. Obrigada por compartilhar sua história e fornecer inspiração. Tenha certeza de que muitos têm orgulho de você, também! 🙂

  4. Avatar de Ana Brasil

    Que orgulho de você e da sua história!!

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