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Ballrooms contemporâneos: como a comunidade LGBTQIA+ se encontra nas noites cariocas

A reportagem especial apura as experiências da geração Z da comunidade LGBTQIA+ nas noites cariocas.

“Alguns dizem que somos doentes, loucos, e alguns dizem que somos os seres mais belos e especiais da Terra” é a fala que marca “Paris is Burning”, documentário que mapeia os hábitos festivos no submundo queer de Nova York nos anos 80, como a cena de ballroom, drag queens e vogue. A mesma cidade, 20 anos antes, foi palco de uma das grandes revoluções da comunidade. O bar nova-iorquino Stonewall Inn se tornou o estopim da rebelião no fim dos anos 60, onde a comunidade local, desalentada em meio a tanta intolerância, se uniu para protestar pela permanência de um de seus poucos ambientes de acolhimento.

No Brasil, estima-se que a população LGBTQIA+ adulta ultrapasse a casa dos 20 milhões, conforme apurado pela Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos (ABGLT) no ano passado. Indo mais afundo, a Universidade de São Paulo registrou, em 2009, que 19,3% dos homens e 9,3% das mulheres fluminenses se identificavam como gays, lésbicas ou bissexuais. Embora os dados sejam antigos, é muito claro que a presença LGBTQIA+ na cidade é marcante. 

A última parada do orgulho no Rio de Janeiro, no fim de 2022, uniu mais de 800 mil pessoas nas ruas de Copacabana em um ato de auto-celebração. O local escolhido, entretanto, não é tão pura coincidência. Foi neste mesmo bairro da Zona Sul carioca que se abriu a primeira boate gay da cidade, em 1992. Projetada por um empresário francês, a boate Le Boy rapidamente se tornou um símbolo tradicional e icônico para a comunidade entre os anos 90 e 2000, recebendo visitas de celebridades internacionais que passaram pela cidade, como Rihanna, até fechar as portas em 2016. A discoteca era conhecida pela presença de drag queens e go-go boys, além da presença forte de dance music e seus bailes anuais de Carnaval. 

Por muito tempo, a Le Boy foi um dos poucos locais na cidade que acolhiam a comunidade queer de braços abertos. É inevitável traçar um paralelo ao bar Stonewall Inn, responsável pela rebelião mencionada anteriormente. A busca por acolhimento é um tópico que ecoa dentro da comunidade LGBTQIA+, independente da geração ou recorte temporal.

A boate Le Boy faz parte da história LGBTQIA+ carioca. (Foto: Reprodução/Flickr)

Conforme os anos se passaram, e novas gerações entraram em cena, os destinos se tornaram outros. A vida noturna LGBTQIA+ se expande por toda a cidade, o que tornaria o mapeamento de atividades difícil, mas encontra seu claro epicentro no entorno dos arcos da Lapa, centro do Rio. Os jovens trocam o dia pela noite, chegando em casa quando o sol está prestes a nascer. Por mais que esses ambientes sejam receptivos a pessoas de todas as idades a partir dos 18 anos, é a vida jovem que predomina. 

Lucas Souza, no início da casa dos 20, se sente grato em poder estar num espaço seguro com seus amigos para se divertirem sem julgamentos ou necessidade de adequação a um lugar predominantemente heterossexual.

“Esse acolhimento vem, principalmente, para os nossos que estão saindo de um contexto no qual não há protagonismo dentro da própria vida. Crescemos cercados por pessoas heterossexuais e, muitas vezes, não temos apoio nem dentro e nem fora de casa. Entrar em contato com esses lugares acaba sendo uma forma de, no fim das contas, entrar em contato consigo mesmo e com seus semelhantes. O principal ponto positivo desse espaço é a possibilidade de ser quem você realmente é”, conta o estudante.

Lucas cita as boates Portal e Street Lapa, além da festa Injustiçada, como seus points favoritos. 

Descer do metrô da Cinelândia à noite e caminhar até os Arcos de tornou rotina de cariocas como o jornalista e escritor Gabriel Folena, 27, ainda que ele priorize carros de aplicativo por segurança. Folena credita a equipe de organização dessas festas, que já é formada por pessoas LGBTQIA+, como principal ponto positivo dos eventos. “O evento já nasce tendo esse público como prioridade em todos os sentidos, não só no gosto musical mas na permanência e segurança de todas as letras da sigla, do T ao Q ao P”, conta o escritor. Gabriel também sinaliza que os eventos acontecem em espaços muito limitados, concentrados entre Zona Sul e Centro, o que acaba tornando mais difícil a possibilidade de diversão para quem mora em locais como Zona Oeste e Baixada, além de não serem eventos baratos, tanto no valor do ingresso como no consumo dentro do local. 

Durante o mês de junho, os Arcos da Lapa são coloridos em homenagem à bandeira LGBTQIA+. (Foto: Divulgação/Prefeitura do Rio)

Além das festas “Injustiçada” e “V de Viadão”, Gabriel também frequenta os karaokês da Feira de São Cristóvão, o Bafo da Prainha, ao lado da Pedra do Sal, e o Bar Dellas, na Gamboa. “Em locais mais abertos onde o público não é majoritariamente LGBTQIA+, sinto um receio. Não deixo de me expressar e ocupar esses lugares, mas sempre tenho a consciência de que não estou completamente entre os meus quando o evento não é fechado”, conta o jornalista.

“Poder me expressar visualmente sem o receio de represália por isso é ótimo. Posso me vestir como quero, e encontrar pessoas semelhantes que também gostam de se mostrar dessa forma sempre me dá uma sensação de comunidade muito forte,” conta o carioca.

Laura Gnr Fernandes, 22, se identifica como não-binário, e também é frequentadora de boates na Lapa, como a Portal, além do Bar Dellas, na Gamboa. Ela atribui sua presença por serem ambientes nos quais sente que pode se soltar e dançar, e a dão a segurança de poder estar e se relacionar com quem quiser. Nas experiências que teve, percebeu um índice de assédio menor, o que acaba sendo mais confortável, mas percebe que o mesmo não se aplica a seus amigos gays. Lucas concorda.

“As boates que eu citei em sua maioria têm um público predominantemente masculino, o que significa que casos de assédio não são raros. É bem comum estarmos diante de um cara bêbado que passou dos limites, e isso estraga completamente a experiência,” comenta Lucas Souza.

Além disso, é comum que a exposição a um público predominantemente masculino promova comparações entre os presentes. “Existe uma necessidade de validação externa muito grande e, com isso, a pessoa pode acabar ocultando algumas de suas características para se sentir mais inclusa”, comenta Lucas. “Muitos homens gays acabam ficando com menos gente ou se sentem menos notados quando estão com uma identidade mais alinhada ao feminino. Dessa forma, uma bicha afeminada pode se sentir preterida àquela mais próxima da heteronormatividade”. Gabriel Folena acrescenta que nestes espaços existem muitos homens gays magros, e isso já o fez se questionar se são locais onde realmente se sente à vontade e se também tem direito a estar ali, por não ter um corpo que siga esse padrão. 

Mesmo assim, a busca por catarse e senso de comunidade prevalece, e não impede que os cariocas busquem por esses ambientes. “Um dos pontos mais atrativos é a diversidade no tipo de música, que é sempre atual e não estereotipada,” comenta Gabriel.

E não poderia ser diferente— não existe festa sem música. É de se imaginar que o público queer tenha preferência por divas pop e sucessos radiofônicos no topo das paradas, mas nem sempre esse é o caso. Muitas das vezes, algumas pessoas se apegam aos projetos que não fizeram tanto sucesso ou deep-cuts de artistas. Esse é o conceito da festa “Injustiçada”. Como o próprio nome sugere, cada edição tem foco em um disco ou artista que, apesar da qualidade, não foi um sucesso comercial e não tem o reconhecimento que merece, sendo assim, injustiçado. 

Antonio Cruz é CEO e fundador do evento. Nos palcos, é conhecido como o DJ Toni+. Criada em 2018, a festa surgiu a partir da necessidade do criador de promover um um espaço em que se sentisse pertencente e escutar as músicas que queria, e, consequentemente, nesse processo, encontrar outras pessoas que também compartilhassem desse gosto musical e experiências de vida. “A proposta era criar esse lugar para encontrar similaridades com outras pessoas naquele espaço tanto pelo gosto ou vivências ou celebrar um artista que gosta”, conta Antonio. A festa já teve 24 edições no Rio de Janeiro, com média de público de 700 pessoas.

“Além da música, o espaço em si é um atrativo para a comunidade. É um espaço de segurança e assimilação, pela forma como o ambiente é pensado por pessoas LGBTQIA+. A importância desse público é indiscutível por serem essas pessoas que criam nosso ambiente. Existe uma coletividade na comunidade e nesses espaços. Acho que esse é o ponto mais significativo no que a gente faz, porque a comunidade compõe a maioria do público e o nosso foco,” conta o produtor.

Antonio acredita que seja a partir da característica de assimilação com o público e o espaço, onde você sabe que vai encontrar com pessoas que se identifica e ouvir músicas que te tocam. Em edições passadas, a festa celebrou figuras como Tinashe, Miley Cyrus, Lady Gaga, Charli XCX, Sophie, entre outras divas.

“Ouvir música é sobre sentimento. A festa é feita de momentos, e existem momentos que tocam certas músicas e nesses momentos a gente sabe que todo mundo vai cantar junto e vibrar, e sentir esse senso de pertencimento e coletividade. A “Injustiçada” é um lugar de diversão, descontração e escapismo, e um espaço onde a gente se reencontra com nós mesmos e com quem tem vivências parecidas”, pontua Antonio.

(Foto: Amanda Melo/iHateFlash)

Lésbicas, gays, bissexuais, transsexuais, assexuais, panssexuais ou travestis— o sentimento de pertencimento em sua plenitude é a busca incessante de todos os membros da comunidade LGBTQIA+. O preconceito está em todo lugar, seja em casa, nos ambientes escolares ou corporativos, nas esquinas, em torcidas de futebol, até internamente. Mesmo vivendo no país que mais mata pessoas queer no mundo, a comunidade ainda encontra forças para se reunir e celebrar sua identidade e existência em sua forma mais autêntica, seja entoando os “hinos” mais animados (“Born This Way”, Lady Gaga; “I Feel Love”, Donna Summer) ou mais emotivos (“Indestrutível”, Pabllo Vittar; ”Flutua”, Johnny Hooker e Liniker) em boates apertadas. O suor se confunde com lágrimas, o coração bate na frequência da música, e com tantos corpos ao redor, se sente abraçado. Com resiliência indiscutível, sua principal luta é que sejam livres todas as formas de amor.

Foto de capa: Victor Curi/iHateFlash

Reportagem de João Agner para a disciplina de Apuração, Pesquisa e Checagem, ministrada pela professora Daniela Oliveira.

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