“A Globo é um lixo, o Bolsonaro tem razão”. Foi com essas palavras, de maneira grosseira e truculenta, que uma mulher tomou o microfone da mão do repórter Renato Peters enquanto ele fazia uma entrada ao vivo na edição do SP1, da TV Globo, em 10 de abril de 2020. A situação assustou Peters e o apresentador, César Tralli, que interrompeu o link no ato. Este, porém, não se trata de um fato isolado, mas apenas um de uma série de outros ataques de igual e até maior teor.
O resultado se reflete em números. Em 2020, o Brasil caiu quatro posições no ranking de liberdade de imprensa da organização Repórteres Sem Fronteiras. Em 111º lugar na classificação, o país entrou para a zona vermelha do mapa, o que significa que, para o grupo, a situação da imprensa no Brasil é difícil.
A organização aponta que a posse do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) em 2019 acirrou as dificuldades da imprensa brasileira. “Insultos, estigmatização e orquestração de humilhações públicas de jornalistas se tornaram a marca registrada do presidente, sua família e sua entourage”, afirma o texto de apresentação do ranking.
A TV Globo é um dos veículos mais afetados pelos ataques sistemáticos à imprensa. Além da intimidação verbal ao trabalho dos jornalistas, já houve registros até de agressões que chegaram às vias de fato. Em outubro do ano passado, o jornalista Arcênio Corrêa, da TV Integração, afiliada global em Prata (MG), chegou a ser vítima de um mata-leão enquanto fazia uma matéria sobre as eleições de 2020.
O Relatório Anual de Violações à Liberdade de Expressão da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert) mostra que as agressões, ofensas, ameaças e intimidações contra jornalistas aumentaram 167,85% no Brasil em 2020 em relação a 2019. Foram 150 casos de violência não letal registrados no ano passado, envolvendo pelo menos 189 profissionais da imprensa e veículos de comunicação brasileiros.
O levantamento divide os casos em 10 categorias diferentes: ofensas (59), agressões (39), intimidações (25), ameaças (10), atentados (4), censuras (3), ataques e vandalismo (2), detenções (2), e sequestros (1). As ofensas representam 39,3% do total e cresceram 637,5% em relação a 2019, quando foram registrados apenas oito casos. Já as agressões físicas, em segundo lugar, representaram 26% do total das violências contra esses profissionais, em 2020.
O repórter da TV Gazeta de São Paulo Luciano Penteado foi outro profissional interrompido enquanto exercia a função. No dia 14 de abril do ano passado, ele estava na Avenida Paulista, ao vivo no Jornal da Gazeta, quando um homem atravessou a rua, cortou a fala de Penteado e gritou no microfone da emissora: “É tudo mentira”, deixando o profissional desconcertado.

Foto: Reprodução TV
“É revoltante, do ponto de vista profissional. Você está ali fazendo seu trabalho, não só meu, da equipe toda. É chato você ver que uma pessoa se predispõe a atrapalhar o trabalho de outras. Não tem muito o que fazer, a nossa vida na rua está sujeita a esse tipo de situação. Nesse sentido, a gente fica chateado na hora, mas tem que tocar o barco”, disse o repórter.
Após a ocorrência de casos dessa natureza, o psicólogo Nathan Barbosa explica que pode, sim, haver um incentivo aos ataques à imprensa por parte de movimentos políticos. “A hostilidade é feita para isso. Você só dá um gatilho. O gatilho é dizer que essa imprensa existe para fazer mal ao nosso grupo e o que vem daí não pode ser outra coisa senão a hostilidade”.
Nathan prossegue em sua análise: “É possível instigar, incitar, e, para fazer isso, você precisa ser um líder que está descrito nessa teoria freudiana de forma exatamente igual ao atual presidente, Jair Bolsonaro. É preciso ter um discurso repetitivo, simplificado e firme. Então, não é novidade haver um líder que se apresenta como solução para os problemas e que usa dessa mesma metodologia para poder incitar, instigar e manejar a massa que está ali sob a proteção ideológica, simbólica e psicológica dele”.
Mulher também é vítima
As agressões não escolhem gênero. No dia 14 de abril de 2020, dois homens partiram para cima da repórter Mariana Aldano, da TV Globo de São Paulo, em frente a uma agência da Caixa Econômica Federal. Na ocasião, a repórter estava ao vivo mostrando a fila para o saque do auxílio emergencial, quando os sujeitos começaram a pular e gritar “Globo Lixo”.

Foto: Reprodução TV
Na Região Serrana do Rio, Julia Corson, então vídeo repórter da InterTV, afiliada da Rede Globo, também foi hostilizada na mesma época e, por ser mulher, se sentia uma jornalista mais suscetível a ataques desse gênero. “Com certeza, por ser mulher e ir para a rua sozinha, o desrespeito é maior. Se eu estivesse acompanhada de um cinegrafista homem, a chance de os caras crescerem para cima de mim seria muito menor”, conta a jornalista, que passou por uma tentativa de agressão física e uma outra situação de agressão verbal.

Foto: Acervo Pessoal
Ex-repórter da Conmebol e atualmente na FlaTV, Júlia considera ser mulher jornalista no meio esportivo ainda mais desafiador. “Ser mulher jornalista no meio esportivo é difícil à beça, mas ser mulher jornalista em qualquer lugar já é muito difícil. A gente já tem que se provar muitas vezes”, considera.
De fato, 2020 foi um ano de casos delicados e espinhosos no que se refere à liberdade de imprensa. Em Araruama, o jornalista independente e pré-candidato a vereador naquele ano, Leonardo Pinheiro, de 39 anos, foi assassinado com um tiro enquanto fazia uma entrevista com um morador. O caso ganhou repercussão nacional e os suspeitos de cometer o crime foram presos. Um deles era policial militar, cuja esposa concorreu ao cargo de vereadora e, consequentemente, seria concorrente de Leonardo na disputa.
A poucos quilômetros dali, em Cabo Frio, bastou a jornalista Renata Cristiane repercutir uma matéria da Veja sobre rachadinhas no gabinete de um deputado estadual da cidade para que a profissional recebesse o seguinte áudio: “Os ossos do seu corpo estão com os dias contados. O deputado Mauro Bernardo (PROS) vai quebrar, vai desossar seus ossos todinhos”. “O fato de eu ser uma mulher homossexual, masculinizada, grande, mais de 1,70m, mais de 80kg, ter uma voz grossa e saber falar alto, desconserta as pessoas. Então, todas as vezes que eu tive o enfrentamento, quando eu usei minha voz e me posicionei usando meu tamanho, houve recuo”, afirma Renata.
“Mas o fato de ser mulher torna minha batalha ainda mais complicada. Especialmente, quando lido com assuntos considerados da esfera masculina, como, por exemplo, a pauta policial e política”, diz. “Já sofri ameaças de deputados, de policiais, porque eles acharam que, por ser mulher, eu iria recuar do meu posicionamento, mas logo perceberam que eu não recuo tão facilmente”, conclui.
Luiz Felipe Rodrigues – 3º período
Parabéns, Luiz! Bjs!