Em um dos quartos da casa mais vigiada do Brasil, um dos moradores diz não querer se sentir culpado por falar com Deus. No jardim, ele conta sobre como passou dois anos batendo de porta em porta trabalhando como missionário mórmon. Na varanda, ele confessa já ter praticado poses, para que pudesse avaliar o quão feminino agia e o quão másculo ainda precisava parecer. As experiências relatadas por Gilberto Nogueira, o economista de 29 anos que alcançou o quarto lugar no último Big Brother Brasil, não se limitam à vida do “brother” pernambucano.

Foto: Reprodução/Big Brother Brasil
Michel Amaral, homem gay de 24 anos do Rio de Janeiro, chegou a frequentar, quando pré-adolescente, a igreja católica, onde “condenação” era tema certo em todas as aulas da catequese. Já Paula Carvalho, mulher lésbica de 30 anos, também carioca, ouvia sobre condenação em um templo um pouco diferente, mas que servia ao mesmo Deus. Cresceu rodeada pelo cristianismo protestante da família, que não esperava lidar com uma sexualidade que não fosse a hétero.
Juntos a Gilberto, Michel e Paula ajudam a pintar parte do quadro incerto da população LGBTQIA+ no Brasil, uma população que baseia seus números – possivelmente entre 14% e 16% dos brasileiros – em dados não confirmados, cruzados por diversas entidades, coexistindo com outras porcentagens que negam, condenam ou punem suas individualidades. As experiências do trio exemplificam a complexa relação entre homossexualidade e religião no país.
Por vezes, o preconceito acaba refletido em estatísticas. Com base em notícias da imprensa e notificações de grupos da sociedade civil, dada a ausência de números concretos recolhidos por secretarias de Segurança e órgãos públicos, o Grupo Gay da Bahia (GGB) vem contabilizando agressões, assassinatos e suicídios da população LGBTQIA+ no Brasil.
Em 2019, segundo levantamento da ONG, 329 pessoas da comunidade LGBTQIA+, entre elas lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais, tiveram morte violenta no país. Foram 297 homicídios e 32 suicídios, o que equivale a uma morte a cada 26 horas. Para o antropólogo Luiz Mott, fundador da ONG, a estreita proximidade entre Estado e religião figura entre um dos principais empecilhos para avanços de políticas públicas em defesa dessa parcela da população.
O Censo realizado em 2010 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 65% da população brasileira se considerava católica, e 13,4% evangélicos pentecostais ou neopentecostais. Na década anterior, no ano de 2000, o número de evangélicos era menor, 10%. Conhecidos por seus discursos tidos como excludentes, os grupos evangélicos estavam em ascensão no país desde o início do novo milênio. Gilberto era membro da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, ou “igreja mórmon”, como se popularizou. Ainda que não haja um dado específico sobre o grupo nos censos, os cálculos da própria igreja sugerem que haja 1,3 milhões de fiéis no Brasil.
Andar com fé e com medo
Entre as crenças da religião mórmon, se condena o uso de álcool, se encoraja a evangelização e, mesmo que a igreja reconheça a realidade da atração entre pessoas do mesmo sexo, é passível de expulsão o membro que se deixe levar por seus desejos homossexuais. A mãe de Gilberto, Jacira Santana, contou à imprensa que o filho chegou a ser noivo de duas moças quando ainda praticava a religião, antes de assumir sua sexualidade. Não é uma surpresa, visto o sacrifício que é esperado daqueles que desejam continuar como mórmons.

Foto: Acervo pessoal
A exposição a falas discriminatórias pode trazer consequências a quem tenta se adequar a elas. O psicólogo clínico comportamental Filipe Narciso já identificou questões específicas que se repetem entre pacientes que se identificam como LGBTQIA+, como ansiedade social, quadros depressivos, inseguranças nas relações amorosas e problemas com autoestima. Dandara Aziza, também psicóloga, identifica o mesmo padrão em pessoas que fazem parte de minorias sociais e vivenciam experiências discriminatórias que têm consequências em sua constituição subjetiva: “Quem é alvo de preconceito tem sua forma de Ser e Estar no mundo atacada, o que pode ensejar, por exemplo, medo, estresse e vergonha de si mesmo. Tendo em vista o preconceito que poderá sofrer, a vítima tenta mudar, inibir ou se afastar das características que a liguem ao grupo minoritário. Se adequar, neste caso, faz a pessoa negar uma parte de sua identidade”
O discurso religioso que potencialmente auxilia no preconceito contra pessoas LGBTQIA+ é rejeitado pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP), que não compactua com a forma clínica por vezes tomada pela fé: a terapia de “reversão sexual”. De acordo com a Resolução 01/99 do CFP, não cabe a profissionais de Psicologia no Brasil oferecer qualquer tratamento desse tipo, visto que a homossexualidade não é considerada patologia pela Organização Mundial da Saúde (OMS).
Outra medida que busca salvaguardar a individualidade LGBTQIA+ é a resolução 01/2018, que estabelece normas de atuação para os profissionais em relação aos gêneros (que diferem do conceito de sexualidade) de pessoas transexuais e travestis, baseadas em três pilares: “transexualidades e travestilidades não são patologias; a transfobia precisa ser enfrentada; e as identidades de gênero são auto declaratórias.”

Foto: Acervo pessoal
“Esse tipo de prática viola direitos humanos, é uma ameaça à profissão, e uma ameaça à vida de pessoas, que, muitas vezes, procuram a psicologia acreditando que precisam de cura”, alerta Filipe Narciso. Ele observa, de qualquer forma, que a maioria de seus colegas respeita as deliberações do CFP e as individualidades de seus pacientes. Dandara Aziza ressalta que as interseções entre fé e psicologia não devem, e não podem, assumir caráter clínico: “O Código de Ética Profissional dos Psicólogos e Psicólogas é claro ao preconizar que, em suas funções profissionais, não devem incitar os atendidos a assumirem para si suas convicções e valores pessoais, como fé e religiosidade”.
Fora dos consultórios, nos ambientes onde prevalece a prática livre da fé, as preocupações são outras, como relatado por Michel Amaral, que, aos 12 anos ingressou na catequese – formação religiosa do catolicismo. Sua motivação? Achou que seria legal acompanhar uma amiga que também frequentava. O que encontrou, entretanto, não foram momentos leves: “Todo dia a palavra ‘inferno’ era citada na aula por fazermos isso ou aquilo, e a sexualidade também entrava nessa questão.
A catequista disse, uma vez, que estava na bíblia que não podíamos nos relacionar com uma pessoa do mesmo sexo, pois isso era errado”. Sua primeira comunhão, a cerimônia que marca a “formatura” dos novos catequizados, também o marcou por sensações de peso. É necessário, antes dessa importante graduação, que o recém-formado se confesse ao padre, e o pré-adolescente sentia medo, não reverência: “Pensei que poderia falar de uma paixonite por um colega de classe, ou da vez em que achava que estava perto demais de um menino e nossos joelhos se encostaram. Lembro de chorar por causa disso antes de me confessar, como se fosse o maior pecado possível. Na hora da confissão, eu omiti”.

Foto: Acervo pessoal
A oração como meio de absolver o pecado da sexualidade não é algo exclusivo ao catolicismo. No protestantismo, outro braço do cristianismo, o mesmo acontece. Quando criança, Paula Carvalho decidiu que não seria um problema contar à sua mãe, cristã, sobre o afeto que sentia por uma colega. Como resposta, recebeu uma intervenção tida como divina: “Acabei tendo que frequentar ainda mais a igreja, sendo levada a sessões de oração. Passado um tempo, decidi dizer que não sentia mais nada daquilo para poder deixar de ir, já que não era um lugar confortável para mim”.
Paula nota que, desde cedo, nunca percebeu qualquer tipo de incômodo que partisse dela mesma com o que sentia, e que isso vinha de fora: “São problemas que os outros colocavam sobre a minha sexualidade. Nunca tive problemas quanto a isso que fossem realmente meus. A religião fez com que eu me anulasse por um tempo até eu me entender”.
Para Dandara, crenças religiosas carregam esse profundo poder de influência por serem parte fundamental da sociedade: “A Psicologia entende a fé e a religiosidade como parte importante da cultura, logo, têm um papel significativo na constituição subjetiva de cada um de nós”. Combinadas ao preconceito, então, podem facilitar a internalização daquilo que fere um indivíduo e sua identidade, às vezes sem que a pessoa sequer perceba: “É importante ressaltar que o preconceito pode se apresentar de forma sutil e naturalizada, o que dificulta o protesto contra a ação”. Dessa forma, é possível compreender como, num grupo religioso, o discurso que vem dos púlpitos pode ser primeiramente interpretado pelos fiéis – héteros e cisgêneres ou não – como uma verdade.
Questão de saúde pública internacional
Aos LGBTQIA+ não está negada, contudo, a prática de uma fé. Hoje, Michel Amaral tem a Umbanda como religião, depois de se afastar de qualquer crença religiosa logo após sua primeira comunhão anos atrás: “Na igreja católica eu achava muito mais ‘nãos’ do que ‘sim’, e acredito que por muito tempo estar dentro desse meio me fez me sentir culpado por ser quem eu era. Atualmente, na Umbanda, me sinto muito confortável comigo mesmo, diferentemente das igrejas onde as pessoas me olhavam estranho e os superiores me condenavam”. Paula Carvalho, por sua vez, prefere não praticar uma religião: “Até hoje, pelo menos, não encontrei uma que abraçasse o que penso, minha visão de mundo, e que me fizesse sentir confortável comigo”.
Gilberto não abdica nem de si mesmo, nem de sua fé. Ainda confinado no reality show, o pernambucano de Jaboatão não escondia sua gratidão a Deus a cada conquista que alcançava durante o programa, sendo sempre muito vocal sobre o que acreditava e de onde conseguia sua motivação para seguir. Em conversa com outro participante, “Gil do Vigor” deixou explícito que não acredita que deva haver separação entre quem ele é e no que acredita: “Deus continua falando comigo, eu sendo bicha ou não”.
Na mesma conversa, Gilberto cita um dado sobre o estado de Utah, nos Estados Unidos, cuja capital Salt Lake City é tida como a capital mundial da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias. Gil comenta que lá existe uma alta taxa de suicídio entre jovens mórmons, e não está enganado. Segundo estudo publicado pela Anne E. Casey Foundation, o estado de Utah caiu vinte posições no ranking nacional de saúde pública infantil nos EUA.
A ONG Vozes Pelas Crianças de Utah complementou o dado, explicando que a principal causa da queda brusca foi o aumento de suicídios entre a juventude LGBTQIA+, em particular. O número vem sendo quase duplicado desde 2008, coincidentemente o ano em que a igreja intensificou, publicamente, sua campanha anti-LGBTQIA+. Os dados não são desconhecidos pela instituição, visto que estão disponíveis em um blog confessional da própria religião, o Vozes Mórmons.
O pior pode ser evitado, e ainda dentro de casa. O psicólogo Filipe Narciso ressalta que jovens e suas famílias não precisam sofrer por questões ligadas à sexualidade, e que é essencial cultivar um espaço em que conversas possam ocorrer sem julgamentos: “É importante ter um diálogo aberto, entender que o filho, a filha, ou filhe pode não suprir as expectativas em relação à religião, à sexualidade, ao gênero ou à profissão que a família sonhou, e que o amor pode continuar”.
Dandara Aziza concorda e acrescenta: “No processo para compreender sua sexualidade, a pessoa LBGTQIA+ precisa ter sua humanidade respeitada. Existe um ditado que diz que ‘filho se cria para o mundo’, e a sabedoria popular serve para lembrar aos cuidadores que, apesar de imaginar futuros possíveis para os filhos, eles têm seu próprio caminho para trilhar”.
A psicóloga continua: “O Brasil é um dos países mais LGBTQfóbicos do mundo, e é importante que essa pessoa tenha uma rede de apoio a que possa recorrer em alguma situação de vulnerabilidade”. Ela acredita que familiares engajados nas lutas contra o preconceito e por direitos podem se mostrar grandes aliados nesse processo de aceitação. Filipe indica o perfil Mães Pela Diversidade como recurso que pode ser de grande ajuda para o entendimento de pais e responsáveis, possibilitando que pesquisem e aprendam, para oferecer um melhor suporte: “Por mais difícil que seja saber que o mundo aqui fora pode ser perigoso, sem o apoio dentro de casa a vida pode se tornar ainda mais complicada”.
Depois do medo

Foto: Acervo pessoal
Michel e Paula hoje traduzem suas individualidades em conhecimento e criatividade. A graduanda em História da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) traz no título de sua pesquisa de monografia o orgulho que aprendeu a sentir: “Cinema e Lesbianidade: a representação da mulher lésbica no universo Hollywoodiano dos séculos XX e XXI”. Crítica de cinema e redatora independente, Paula se encontrou na sétima arte.
Michel, por sua vez, abraçou a cultura pop das músicas, jogos e artistas que lhe ofereceram refúgio e conforto ao longo da vida, sem julgá-lo por ser quem era. O graduando em Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) hoje redige para blogs, comanda um podcast, e é streamer de jogos na plataforma Twitch (sob o nome de usuário sailormichy, em homenagem a um de seus confortos, o anime Sailor Moon), sem esconder qualquer parte de si. O carioca acredita que sua personalidade criativa veio de fábrica, e brinca: “Sempre fui muito aquariano”.
Para nenhum dos dois membros da comunidade LGBTQIA+, suas identidades são algo que deva ser questionado, e sim aceito como parte de quem são. Mesmo que as resistências ainda se perpetuem, a visão que têm sobre si mesmos e sobre a luta que os acompanha não é mais atravessada pelo medo, como afirma Paula: “Eu tenho uma visão muito clara de quem eu sou e são eles, sociedade ou família, que precisam pensar em como vão me respeitar”.
No país que mais mata sua população LGBTQIA+, ainda há quem transmita vida, e para Michel, Gilberto foi e é uma dessas pessoas. Para o streamer, a participação de Gil no BBB21 significou muito: “Ele foi uma pessoa de muita fé ali dentro, e isso é retirado de nós LGBTQIA+ por muito tempo. Às vezes, nunca nos conectamos com o ato de ter uma fé. Eu acho que ele estar em televisão nacional superando suas barreiras internas, se aceitando e se colocando para o mundo como um homem gay que não larga mão da sua fé significa que nós, aqui fora, também podemos. Não precisamos abrir mão de algo que acreditamos. Eu espero que, para o movimento, o Gil tenha mostrado que não precisamos estar dentro da igreja para ter fé, e que outros caminhos também são possíveis”.
Gabriel Folena – 3º período
Parabéns, Gabriel! Perfeito, como sempre! Bjs!