Por Caroline Belo
Debaixo de marquises e viadutos ou em calçadas e praças, há seres humanos lutando diariamente pela sobrevivência. Alguns se instalam temporariamente, outros já conhecem a vizinhança. Há, também, aqueles que não estabelecem vínculos com o local. A Política Nacional para a População em Situação de Rua, instituída pelo Governo Federal, em 2009, define pessoas em condições de rua como um grupo heterogêneo, que faz uso do espaço público como moradia e sustento. Em outras palavras, faz do chão frio e sujo, uma cama, dos lugares cobertos, um teto e da liberdade, o próprio lar.
Como essa população não é homogênea, possui ideais diferentes e está nas ruas por motivos diferentes. Ou seja, cada pessoa que vive nessas condições vulneráveis tem sua própria história a contar. De acordo com os últimos dados da Pesquisa Nacional sobre População em Situação de Rua realizada pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome e pela Secretaria de Avaliação e Gestão da Informação, há vários fatores que explicam a ida para as ruas, como alcoolismo e/ou uso de drogas (35,5%), desemprego (29,8%) e conflitos familiares (29,1%). O levantamento constatou que, apesar de não ser muito comum, alguns optam por não voltar para casa – mesmo quando têm oportunidade. Essa escolha está ligada, muitas vezes, a uma liberdade – ainda que vaga –, a um desejo de viver sem amarras e, principalmente, à possibilidade de poder ser quem eles quiserem e sem julgamentos.

Esse é o caso de Carlos Alberto dos Santos, 65 anos, morador de rua e aposentado. Carlinhos, como é popularmente chamado, começou a trabalhar em 1975 e parou há oito anos. Com rugas no rosto, uma barba mediana e um olhar desconfiado, diz: ‘‘Hoje eu bebi cachaça e também estou doido para fumar maconha’’. Essa fala denuncia a dependência química, como conta Ione dos Santos Oliveira, 57 anos, prima de Carlinhos. ‘‘Na adolescência, ele já começava a entrar no mundo do alcoolismo. Garfo, colher, fósforo, qualquer coisa dentro de casa era vendida para comprar droga e bebida. Então, ele começou a ficar mais tempo pelas ruas. Minha família toda tentou ajudá-lo, mas, infelizmente, não adiantou’’.
Ela lembra que, antes de viver nessas condições, ele tinha bons empregos. Já trabalhou na área de som da Rede Globo, foi eletricista da Vale – antiga Vale do Rio Doce – e também maquinista da Central do Brasil. Ione não entende o gosto do primo pelas ruas e afirma que ele é teimoso e que nunca gostou de regras. ‘‘Ele sempre andou com os amigos da rua, então costumava levá-los para minha casa, mas não gostávamos disso. Não foi o vício que o fez ficar longe de nós, mas sim a busca pela tal liberdade. Ele queria fazer o que bem entendesse sem ser contestado’’.

Acostumado a andar com Carlinhos e a dormir no mesmo local que ele, Jerônimo Andrada Marcello, 57 anos, continua a conversa: ‘‘Eu quero contar minha história, eu também quero falar’’. Ambos são dependentes químicos, mas, diferentemente de Carlinhos, Jerônimo participa de um programa de educação mental chamado Centro de Atenção Psicossocial Álcool e outras Drogas (CAPS AD). ‘‘Tem gente que acha que o CAPS faz você parar de beber, mas, na realidade, é redução de danos. Hoje, graças à Deus, reduzi bastante minha dependência’’, ele diz. A esposa e a filha também o ajudaram de diversas formas e tentaram levá-lo para casa, mas não adiantou. ‘‘Minha família sempre me apoiou, só que chegou a um ponto em que eles não eram mais obrigados a aceitar isso que eu quero viver. Em um determinado momento, nós, dependentes químicos, precisamos ficar sozinhos’’, desabafa.

Centro de Atenção Psicossocial Álcool e outras Drogas (CAPS AD) Foto: Caroline Belo
A situação de Carlinhos e Jerônimo é explicada pela coordenadora do Centro de Referência Especializado em Assistência Social (CREAS), Bárbara Barbosa Machado Campos, 30 anos. ‘‘Muitas pessoas nessas condições possuem casa e família, mas por diversos motivos permanecem nas ruas e a dependência química é um grande fator que contribui com isso’’. Ela conta que quase toda a população em situação de rua é envolvida com álcool e drogas – álcool em maior relevância –, mas não é só isso. ‘‘Outra causa, também, são questões sociais, como conflitos familiares. Assim, uma coisa desencadeia outra’’. Às vezes, o dependente não adere ao tratamento e a família não aceita, como no caso de Carlinhos. ‘‘Eles vão para as ruas para se sentirem livres. Em casa, existem regras e muitos deles não querem isso’’.
Bárbara esclarece que as famílias entram em contato, vão ao CREAS e, a partir disso, o caso é encaminhado aos serviços especializados, mas que não depende somente dos profissionais e especialistas. Isso porque moradores de rua são titulares de direitos perante o Estado e a sociedade. Então, mesmo que um dos serviços ofertados pela assistência social seja direcionado a pessoas em situação de rua, se não houver um desejo de ambos por uma melhora, de nada adianta. ‘‘Não podemos levar à força. Eles são livres para fazerem as próprias escolhas’’, afirma a coordenadora.
Além dela, outros especialistas comentam sobre a situação de quem vive nas ruas. A psicóloga e ex-funcionária do CREAS, Elisabeth Silva, 60 anos, explica: ‘‘O morador de rua está despido de tudo, é a mais pura essência do ser humano. Sem ambição e inveja, nada almeja. É a melhor pessoa para se lidar, mesmo sendo usuário’’. Ela diz que, de vez em quando, era chamada até três vezes, em um mesmo dia, o que ocorria até durante a madrugada. ‘‘Os profissionais da saúde diziam que quando os moradores de rua apareciam, era para discar para a Beth’’.
A psicóloga conta, também, um dos casos que presenciou. ‘‘Certa vez, conheci Marli. Ela estava doente e foi medicada, mas preferiu voltar às ruas. Não queria ir para casa e nada pode ser forçado, porque existe o livre arbítrio, ou seja, não podemos obrigar ninguém’’. Ela afirma ainda que a questão está ligada diretamente à liberdade. ‘‘Quando eu trabalhava no CREAS e cuidava dos moradores de rua, levava-os para o abrigo e, então, tomavam banho e se alimentavam, mas não ficavam nem por dois dias, era muito difícil isso acontecer. Logo depois, desapareciam e voltavam às ruas. O que eles querem mesmo é ser livres sem que alguém os impeça’’.
Outra história de vida nas ruas pode ser percebida perto da estação da Carioca, no Rio de Janeiro. Por lá, é possível encontrar Aldo Zalei das Neves, um senhor analfabeto, 70 anos, que está em situação de rua há mais de duas décadas. Com dificuldade para andar, senta-se, aliviado, em um dos degraus da estação e desabafa: ‘‘É que eu não tenho lugar para ir, não é?’’. Isso se dá porque ele perdeu a família, só restou a irmã, que mora em São José dos Campos, São Paulo, mas que não se identifica com o modo de vida dele. ‘‘Ela não coloca regras. Eu fumo maconha, gosto de beber cachaça e ela frequenta igreja. Então, para não a perturbar, eu fico nas ruas, é uma escolha de vida’’. Cabisbaixo, lamenta a perda da filha que morreu de overdose. ‘‘Penso em largar a bebida por causa disso, mas ainda não consegui’’. Quanto à vida no Rio de Janeiro, ele diz que sente-se livre. ‘‘Prefiro ficar nas ruas, aqui tenho mais liberdade’’.

O que acontece é um processo chamado de “rualização”, ou seja, o efeito que a rua provoca no ser humano, que a faz ser mais atrativa do que a própria casa. A assistente social da Casa da Amizade, Elisabete Rodrigues da Costa, 35 anos, esclarece: ‘‘Nas ruas, há uma questão de identidade e autonomia, isto é, ser quem eles realmente são. Dessa forma, rompem com os paradigmas da sociedade, de que você tem que seguir um padrão’’. De acordo com ela, o vício em álcool e drogas é a resposta que as pessoas querem ouvir. ‘‘Colocamos a culpa na dependência, mas a libertação é a questão central por trás disso. Há uma possibilidade de serem eles mesmos, sem amarras.
Isso é o que faz valer a pena passar por tanto perrengue: fome, frio, perigo de morte e descaso’’. Ela explica que há também outro aspecto que tem relação com essa liberdade: o fascínio pela invisibilidade. ‘‘Por anos, a sociedade tornou os moradores de rua invisíveis e chegou a um momento em que essa invisibilidade se tornou, de certa forma, boa’’. Ela dá como exemplo casais tendo intimidade ao ar livre. Se eles se sentem invisíveis, podem ter relações sob a luz do sol. ‘‘No fim das contas, a rua é um bom lugar para se esconder e ter liberdade’’, finaliza.
Reportagem produzida para a disciplina de 5º período Projeto Interdisciplinar em Jornalismo Impresso
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