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O homem e as camisas dos times de futebol: o que leva o hétero e o LGBTQIAPN+ ao uso?

Agência UVA traz entrevistas e relatos sobre a relação de homens, sejam LGBT+ ou hétero, com a camisa de time de futebol, e o que o uso dela representa para sua expressão de identidade

Na cultura do brasileiro, a escolha de um time de futebol é de quase mesma importância — se não maior — a da escolha de uma religião. Assim como a fé, o fanatismo no esporte costuma ser passado de geração em geração. Filhos, netos e bisnetos herdam o time dos pais, avós e bisavós. Há uma sucessão contínua do manto. Os fãs mais intensos do esporte até escolhem times internacionais para idolatria. Sua fé é depositada no talento do goleiro, no drible de um centroavante, na sagacidade do técnico. Não é a toa que todos rezam antes de um jogo começar, alguns até promessas fazem.

A relação do homem com futebol é tão antiga quanto a do homem com a camisa de time, afinal partem do mesmo princípio. Seja nos estádios lotados, em um bar com os amigos ou no sofá de casa em frente à TV em momento de jogo, são raros os fãs de futebol que não cobrirão o torso com a representação do amor maior pelo time de sua preferência. Também existem os que vão vestir o manto fora dos 90 minutos de partida; no mercado, no shopping, na academia, em restaurantes… Parece que não importa o lugar. 

Mas seja honesto: ao pensar no típico fã de futebol, qual imagem vem à cabeça? Provavelmente a de um homem másculo, hétero, que usa copo Stanley (que está cheio de cerveja, diga-se de passagem), com as veias da garganta saltando de tanta força que grita ao comemorar um gol ou reprovar uma falta, beirando o agressivo, pernas abertas numa mesa de bar, que você não sabe se acha atraente ou assustador. Mas certamente não é a imagem de um gay afeminado, certo?

As camisas de time carregam o amor do torcedor pelo clube, mas também estão entrelaçadas com observações de gênero.
(Foto: Reprodução/Brechó do Futebol)

É tradicional que a imagem associada a homens héteros seja de um cara másculo, rígido e viril, e a de um homem gay seja de um cara sensível, afeminado, “meio mulher”. Todas essas percepções e estereótipos são convenções construídas por uma sociedade sufocada pelo patriarcado. Gênero, por si só, não passa de uma construção que favorece esse sistema. É assim que se dita o que é apropriado comportamentalmente para um homem, uma mulher, e também de suas orientações sexuais. E, assim como o futebol, a camisa de time se reforça como um símbolo de masculinidade atemporal, sendo instintivamente atrelado ao homem hétero. 

Entretanto, isso tem mudado. Recentemente, tem se popularizado entre os homens da comunidade LGBT+ o uso de camisas de time de futebol, principalmente após a Copa do Mundo Fifa de 2022, quando as redes sociais foram tomadas pela estética “Brasil core”. O movimento ganhou ainda mais força no último ano, com o lançamento da camisa especial do Barcelona em parceria com a cantora espanhola Rosalía, querida pelo público gay, para divulgar seu disco de sucesso “Motomami”, causando a colisão dos dois mundos. 

Não é como se homens LGBT+ não pudessem usar camisas de time, pelo contrário, mas é possível que isso cause uma estranheza, principalmente pelos símbolos atrelados à camisa e o que é suposto socialmente quando se trata de expressões relacionadas a certas sexualidades e identidades. Por quais motivos o uso de uma peça que é tão associada à cultura de homens héteros tem sido preferido por homens LGBT+? O que esse uso representa tanto para homens queer quanto para homens hétero?

O Doutor e mestre em Comunicação e pesquisador de mídias, cultura e diversidade, e também professor na Escola da Indústria Criativa Christian Gonzatti acredita que, dependendo do contexto que está inserida, a camisa de time de futebol pode sim ser um símbolo de masculinidade na nossa cultura. “Os símbolos têm seus significados culturais muito relacionados ao contexto em que estão inseridos. O futebol historicamente é relacionado ao masculino hegemônico e visto pelo senso comum como um esporte de ‘menino’”, ele explica.

Pedro Vilela cresceu com um pai flamenguista, e por muitos anos compartilhou a torcida, mas parou de acompanhar paralelamente a descoberta de sua bissexualidade. Atualmente, encara o gosto pelo esporte de forma diferente, acreditando que o espaço do futebol ainda é muito complicado mas uma realidade potente. 

“Com o tempo, minha relação com o futebol se tornou negativa, muito motivada pelo progressivo ganho de consciência em relação a questões de gênero. Usar camisa de time sempre representou fazer parte de uma massa, um grupo, um coletivo. Recentemente, tem se tornado uma performance de gênero consciente. Meu objetivo ao usar é brincar com as possibilidades da performance, assim quando uso roupas mais femininas”, explica Pedro.

Henrique Carmo, que se identifica como homem gay, não gosta de futebol e tem o uso da camisa de time puramente como uma escolha estética. “Não enxergo o uso de camisas de time como algo muito simbólico ou especial. Pessoalmente, parto do princípio que uma peça tem o significado que você atribui a ela. No meu caso, só faz sentido usar uma camisa de time se ela me servir no sentido de agregar ao meu look”, ele conta. 

Guilherme Porto é gay e gosta do esporte, mesmo não o consumindo com frequência. “Sou flamenguista e tive a total influência da minha família, especificamente do meu falecido avô, que era um flamenguista nato”, ele explica. “Lembro que em todos os jogos do Flamengo, ele os assistia pela TV, onde, ao mesmo tempo, ouvia pelo rádio. Era quase como um evento familiar, ele sentado na poltrona, centralizado na sala, e todos os seus netos, independentes do time, sentavam-se em volta”.

“Além do carinho, vejo o uso da camisa, além de estética, como uma questão de comunidade. Eu uso uma blusa do Flamengo quando ele ganha, assim como um grupo de meninas e gays vestem rosa numa quarta-feira”, brinca Guilherme.

A estética “Brasil core” tomou conta das redes sociais durante a Copa de 2022, e começou a trazer a camisa de time para o armário dos jovens.
(Foto: Reprodução/Pinterest)

Entretanto, Guilherme sente que, quando veste a camisa de time, acaba se sentindo, e também percebe que o enxergam mais másculo. “Houve situações até em que meninos que eu tinha um interesse, mas não tinham tanto assim por mim, demonstravam mais interesse, interagindo, falando que eu estava um “tesão”, por exemplo. Talvez como um fetiche”, ele deduz. José Henrique Rios, também gay, concorda que possa haver um fetiche entre homens LGBT+ em relação ao uso da camisa de futebol. Infelizmente acho que é algo que acontece pela associação com a masculinidade.

“Eu sinto que homens gays, quando veem outros gays usando camisa de time, acabam tendo essa ideia de que o homem é mais másculo. Acho que até eu pensaria assim, acho que é algo um pouco fetichista. A camisa acaba trazendo mais atração por essa ideia de “mais masculino”. Não chega necessariamente a ser sobre a posição dele na cama, mas a impressão dele ser mais homem, porque existe essa ideia muito atrelada ao machismo e homofobia de que gays não são “tão homens” assim”, deduz José Henrique.

José Henrique acredita que homens gays, quando veem outros gays usando camisa de time, acabam tendo essa ideia de que o homem é mais másculo, algo que acontece pela associação com a masculinidade. Carmo concorda: “A expressão da masculinidade é certamente um atrativo entre homens gays. Associar camisa de time ao futebol, que é um esporte heteronormativo, pode tornar o usuário dessa peça mais “masculino” e, então, cobiçado”, ele diz. Gonzatti ainda acrescenta que há um homoerotismo associado a imagens do futebol devido à virilidade que essas imagens pressupõem. Para Pedro, o uso de camisa de time por homens LGBT+ tensiona questões pessoais em cada um.

“O futebol é um espaço de socialização masculina em que a feminilidade é negada e desprezada em nome da construção coletiva do gênero, e daí surgem milhares de experiências negativas entre gays e futebol desde os primeiros anos de vida. Acredito que o uso recente tenha a ver com a possibilidade de dominar um símbolo que já foi negativo pra muito deles, além dos lados positivos da leitura social hétero”, reflete Pedro.

Vitor Borgette, homem gay, acredita que homens gays podem gostar de futebol, apesar de ser um ambiente bem inóspito para pessoas LGBT+. Esse é um sentimento compartilhado por José Henrique, Guilherme e Henrique, o que reforça que o ambiente certamente não é convidativo. Pedro acredita que vários homens gays gostam, e mais poderiam gostar se não fosse a vivência atrelada entre homofobia e futebol. 

Gabriel Matta, torcedor do Fluminense, e homem hétero, conta que em alguns jogos do time é comum ver homens e mulheres aparentemente gays, e é algo que a torcida do Fluminense preza por ser um ambiente que é hostil para essas pessoas. “Quando vejo homens gays de camisa de time é esquisito por não ser algo comum, mas não me incomoda em nada”, ele diz. 

Usuários do TikTok gravam vídeos mostrando seus looks com camisa de time, e frequentemente brincam com a quebra de estereótipos e euforia de gênero. (Foto 1: Reprodução/TikTok @lucasvlvrd; Foto 2: Reprodução/Tiktok @httpmatteo)

Gonzatti não tem certeza se esse estranhamento é unânime, mas acredita que o que causa estranheza nas pessoas é ver que suas leituras da coerência sexo-gênero-sexualidade estão equivocadas. Porém, ao mesmo tempo, homens gays também podem querer passar uma imagem mais heteronormativa e viril. “Cabe nos questionarmos de quais homens gays falamos quando pensamos na possibilidade de ressignificar a leitura heteronormativa das camisas de futebol. Um homem gay mais masculino, certamente, não causa a mesma leitura que um homem que performa mais feminilidade”, ele explica. 

Gabriel diz que o uso da camisa de time não interfere no quão másculo se sente, e apenas simboliza o amor pelo time. Esse sentimento é compartilhado por Davi Landim, torcedor do Santos, que acredita que todos podem usar camiseta de time, independente do gênero ou sexualidade. 

O uso da camisa de time evoca questões que transcendem o amor pelo time; é sobre estereótipos de moda e gênero. Por serem um artigo de vestimenta, estão imediatamente interligadas com uma expectativa de gênero e identidade. A camisa certamente gera uma sensação de pertencimento dentro do grupo de torcedores, o que não necessariamente invoca preconceitos, ou é relacionada exclusivamente ao masculino. Intencionalmente ou não, o uso da camisa de time por homens LGBT+ acaba sendo um ruído na leitura de que futebol é espaço de pertencimento apenas para homens cis-hétero, ressignificando valores de uma masculinidade cis-heterossexual hegemônica.

Foto de capa: Reprodução/Brechó do Futebol

Reportagem de João Agner, com edição de texto de Gustavo Pinheiro

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