Por João Agner
1. Quantas pessoas passam pelo mesmo lugar todo dia? Deve ter um estudo sobre isso. Quantas vezes cruzamos com a mesma pessoa sem perceber? Será que esse batimento que sentiu no seu coração agora está sincronizado com o da sua mãe? Quantas pessoas sentem o mesmo sentimento no mesmo instante? Quantas histórias já começaram no Circo Voador? Essa casa de show, que é inerente à história musical do Rio contemporâneo e existe desde 82, deve ter pelo menos um show todo final de semana, o que dá mais de 2 mil shows. Sábado mesmo, ali eu estava, junto de duas mil pessoas, começando uma história naquela nave.
Fiz planos de ir ao show com alguém que não é mais o que era na minha vida quando os ingressos foram comprados. Histórias desse tipo existem à rodo — meu melhor amigo, por exemplo, conseguiu um ingresso de graça para ver Harry Styles em 2022 graças ao término de uma amiga — mas sempre me pareceram distantes. Agora eu era o autor. Não sei o que ele fez com o ingresso, tampouco quis perguntar para evitar ouvir uma resposta que não fosse exatamente a que eu queria (como se eu soubesse o que queria ouvir), só entendia que ele não estaria ali. Mas eu ainda queria ir, lógico, então eu fui. Sozinho.
Depois de muitos tragos ansiosos na chegada, finalmente decidi tomar uma, logo quando o set de abertura do DJ se iniciou. Fui me despindo da vergonha que me cobria aos poucos, e comecei a me questionar do que eu estava tão envergonhado.
Penso que muita coisa não tem graça quando fazemos sozinhos. O primeiro exemplo que me veio à cabeça foi o Carnaval, que não é tão distante de um show, ou uma festa. São ocasiões onde a sua experiência é construída pela comunidade ali, sejam os que foram com você ou os estranhos em volta. Cinema sim, cinema é até melhor sozinho. Academia tem que ser sozinho. Restaurante é meio oito ou oitenta. No almoço se acostuma a ficar sozinho, já no jantar bate diferente.
É natural que a gente sinta pena de alguém sozinho em um lugar como esse. Eu sentiria pena se visse alguém como eu em uma situação diferente. Foi o que percebi no tom de um conhecido que esbarrei ali quando me perguntou se eu estava sozinho. Mas, surpreendentemente, não me deixei afetar. Mesmo só, não me senti sozinho. Quando começa o show, tudo vai embora.
Talvez seja essa a magia do Circo; ele abraça. Esse circo não tem palhaço, mas tem sorriso. Também tem choro, tem suor (muito suor), tem cerveja, tem música boa, tem gente. Gente pulsando do começo ao fim, as vibrações, a sinergia. O Circo é sinônimo de catarse. É um espaço tão brasileiro, tão carioca, que parece isento de qualquer estrangeirismo e só abraça o que nos vem naturalmente na língua materna. Lá esqueço de qualquer termo americanizado que posso usar para descrever essa situação e me forço a procurar no intuitivo. Se carrega muito mais na palavra quando ela vem do sangue. Não preciso pensar muito para entender as músicas que ouço naquele palco, o que faz com que eu não me blinde de nada. Cada verso me atravessa como deveria, como eu preciso.
Todo mundo que passa pelo Circo Voador deixa muita coisa naquele chão quando vai embora. Mesmo sendo concreto, ele absorve tudo, e deixa a gente livre, até que a vida, insistente do jeito que é, acabe lembrando a gente lá fora em algum momento. O Circo é aquele amigo que deixa a gente fazer uma burrada de vez em quando. É o tipo de sentimento que só a música ao vivo traz. Cada um tem algo que perde quando ouve aquela música tão especial ao vivo, e o que deixo para que o Circo absorva é segredo meu e dele. Coisa de amigo, sabe como é.
2. No dia seguinte, depois de seis áudios hiper detalhados para uma amiga sobre a experiência, finalizei contando sobre como foi ouvir uma música lá. Fui ao Circo naquela noite ver Marina Sena no show de despedida da turnê, e ela me pegou de surpresa decidindo cantar “Santo”, que integra seu primeiro disco, e minha favorita. Antes de ir ao show, até brinquei com alguns amigos para que torcessem que ela cantasse essa por mim, mesmo que sem muita esperança. É uma música muito importante para mim, principalmente com tudo que sinto acontecer comigo esse ano. Costumo brincar que esse ano parece um teste sem fim, e me sinto muito confuso boa parte do tempo lidando com tantos começos e fins, mas principalmente os recomeços, onde me vejo empacado agora. Tem sido complicado assimilar todos esses sentimentos inéditos e conflitantes a todo o tempo martelando meu inconsciente, mas, como a própria música diz, o caminho é feito disso.
Ano passado, quase na mesma data, também estava no Circo para ver Marina. Nessa ocasião estava cercado com amigos que conheço a vida toda, e uma amiga estava se prendendo às músicas da Marina para passar por um fim de ciclo, assim como eu estava agora, um ano depois. Em outubro do ano passado, nem em um delírio eu poderia mensurar o que aconteceria nesses 365 e mais uns diazinhos depois, muito menos antecipar que aquela mesma música que servia à minha amiga me serviria agora. O refrão: “Jeito de quem corre / Sofro na estrada / Lindo é o caminho / Fé que vai chegar um santo que me mostre que eu já sou um anjo e vi a minha liberdade”.
Estar sozinho naquela noite e me permitir tudo que só eu sei que senti foi muito bonito. Acaba que essa música sintetiza toda a essência do que foi o fim de semana. Ela encerra a música cantando, “Hoje não ligo mais se vem ou não vem / Planejo a solitude / Hoje não vou mais sentir o que não tem”. Tomo essa canção como um mantra. É aquele tipo de música que deixa mais leve, até todo o choro sair. Mas depois, claro, vem o sorriso.
Foto de capa: Reprodução/Instagram (@circovoador)
Crônica de João Agner, com edição de texto de Mariana Motta
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