Comportamento Crônica

O pecado original subequatorial

Em sua crônica de estreia, Daniel Deroza reflete sobre pudor e o tabu da nudez no audiovisual.

Quando me foi sugerido escrever uma crônica para este veículo, certo princípio de taquicardia acompanhou a resposta positiva, acredito que por duas razões primordiais. A primeira é a reserva que costumo manter na ausência de intimidade — o que, sinto, confere a mim a reputação de uma pessoa antipática; mas garanto que não, sou apenas uma criatura tímida com questões a serem abordadas na terapia, para a qual venho adiando retornar há alguns anos. O segundo motivo é o meu afastamento do gênero opinativo ao longo da última década. “Será que eu ainda sei opinar? Deveria?”, o superego indagava. De qualquer forma, tendo aceitado a incumbência e sem ideia do que escrever, não pude fazer muito além de buscar referências que me livrassem da ferrugem.

Assim, fui parar na página de uma das minhas escritoras contemporâneas favoritas — cujos raciocínios eu comungo um pouco. Rolando a tela, fui lendo — ou relendo — alguns dos textos de Fernanda Torres — a quem, como fã, gosto de chamar de Fernandinha — para a Folha de S. Paulo, e um título chamou minha atenção. “Por que o pênis aparece tão pouco em filmes e séries? Marlon Brando que o diga”. Ali, a filha da Fernandona divagava sobre o tabu da nudez masculina em frente às câmeras, enquanto a feminina abunda em telinhas, telas e telonas. E, talvez por alinhamento metafísico, o tópico “Partes Pudendas vs Castidade” cruzou o meu caminho algumas vezes naquela semana.

Na mesma madrugada em que presenciei a maior concentração da palavra “pênis”, seus sinônimos, eufemismos e metáforas em um único texto, o Canal Brasil exibia uma “Double Feature Rubem Fonseca”, iniciado pela adaptação setentista “Lúcia McCartney, uma Garota de Programa”, de David Neves, no qual seios aparecem por duas vezes — uma delas em contexto melancólico, aliás — e a intimidade masculina, alvo de tanto pudor, fica no quase em situações prosaicas; mas creio que, nesse caso, a ironia de fugir do explícito ao contar a história de uma prostituta romântica e fã de Paul McCartney é bem-vinda. Em seguida, a versão cinematográfica de “Bufo & Spallanzani” — esse, diga-se, bem menos relevante que a fita da sessão anterior —, ocultou a “honra” do homem mesmo quando ela é o foco da cena — inclusive, é curioso como a castração é um tema recorrente na dramaturgia brasileira.

A nudez masculina continua sendo um tabu no audiovisual. (Imagem: Daniel Deroza/Agência UVA)

Alguns dias depois, o mesmo canal apresentou o clássico “Toda Nudez Será Castigada”, de Arnaldo Jabor, baseado na peça de Nelson Rodrigues. Aqui, a literalidade do título chega a ser jocosa, afinal, a pobre Geni foi, de fato, punida no fim, mas não antes de entrar para a história com a frase — alerta de spoiler —: “Quem te fala é uma morta!”. E, falando em nudez feminina, vi, no mesmo dia, um tweet reclamando do close ginecológico de Maeve Jinkings no primeiro episódio de “Os Outros”, do Globoplay — uma cena com muitas camadas, mas que só me fez questionar: se a nueza feminina foi, ali, usada em prol da narrativa, por que tanto cuidado quando o lugar de vulnerabilidade é ocupado por um homem?, pois, algumas cenas antes, a câmera e a direção fizeram de tudo para resguardar a “fragilidade” masculina, mesmo que sua exibição fosse interessante para a trama; quer maior expressão da derrota do que uma homem de meia-idade chorando, nu, sentado no vaso sanitário?

Isso me fez devanear sobre como, atualmente, até mesmo a nudez feminina — quando não a serviço do fetiche masculino — vem se tornando um tabu. Se já houve um tempo em que Norma Bengell se vangloriava de ter sido o primeiro nu frontal do cinema brasileiro — no filme “Os Cafajestes”, de Ruy Guerra —, hoje, o Instagram derruba o pôster do filme do Almodóvar no qual se via a ilustração de um mamilo lactante. Também me ocorreram pensamentos sobre o que chamo de “O Pecado Original Subequatorial e a Epopeia dos Corpos Nus”. Explicando: por uma lado, Pero Vaz de Caminha narrou, estarrecido, à Corte Portuguesa como os indígenas viviam sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas, por outro, muitos atos verdadeiramente imorais foram justificados pela máxima lusitana “Não existe pecado ao sul do Equador”, transformada em música por Chico Buarque, mas cuja versão definitiva foi cantada pela voz de Ney Matogrosso na abertura de “Pecado Rasgado”, em 1978.

Ainda, se um dos movimentos cinematográficos brasileiros mais conhecidos foi a pornochanchada — que, com todas as críticas possíveis, tem, sim, sua relevância —, mais ou menos na mesma época, entravam em voga os slasher movies, aqueles filmes de terror sobre jovens sendo caçados por um assassino mascarado e nos quais a sobrevivente — a final girl — era sempre a moça virginal; essa lógica, aliás, só foi subvertida em “Pânico”, cujo comentário metalinguístico sobre a virgindade e a discrição visual acerca do corpo da heroína parece ter uma subcamada, haja vista que, comenta-se, a atriz Neve Campbell — à parte, minha scream queen favorita — incluiu, por muito tempo, uma cláusula de não-nudez em seus contratos.

Aliás, um momento específico dessa franquia exprime bem o meu pensamento sobre o assunto. Na sequência de abertura de “Pânico 2”, a personagem Maureen vai ao cinema assistir a adaptação da trama do primeiro filme e, a certa altura, questiona: “Por que ela tem que estar nua? O que a nudez dela tem a ver com a história desse filme?”. O ponto é justamente esse: não se trata de uma nudez indiscriminada, mas contextualizada e que valha para todos os adultos retratados, não apenas para um grupo. No mínimo, um tratamento igualitário — acho que seria digno.

E o cinema nacional sempre teve menos problemas com isso, desde o quase esquecido “Nova Onda”, de José Antônio Garcia e Ícaro Martins, passando pelo comentado “Cama de Gato”, de Alexandre Stockler, até o mais recente “Divino Amor”, de Gabriel Mascaro; no exterior, os valores morais brancos eurocêntricos atravancam um pouco essa abordagem, deixando-a restrita ao circuito de festivais ou a nichos específicos — como o chamado “novo cinema queer”, com expoentes tais quais os franceses “Um Estranho no Lago”, de Alain Guiraudie, e “Faca no Coração”, de Yann Gonzalez.

Porém, em território estadunidense — onde o Código Hays imperou por tanto tempo, levando a uma produção audiovisual ainda pudica —, o close urológico em “Shame”, de Steve McQueen, custou ao galã alemão Michael Fassbender sua indicação ao Oscar, segundo o próprio ator — hipótese lembrada na crônica de Fernandinha, que, a título de curiosidade, chegou a interpretar Lúcia McCartney em uma adaptação para a TV Globo, em 1994.

Para o pai da dramaturgia brasileira moderna, a genitália não é a parte parte mais vergonhosa do corpo humano. (Imagem: Daniel Deroza/Agência UVA)

Por fim, o que quero dizer com esse devaneio — o qual, em meio a tantas digressões, não sei se vai fazer sentido para alguém além de mim — é que, vivendo tempos em que uma sanha neoconservadora tem cooptado até jovens — resultando em estudos cujas conclusões apontam essa geração como a que mais fala de sexo e a que menos transa —, quem quiser ter contato com produções audiovisuais um pouco mais livres das amarras do moralismo terá de recorrer ao tão mal quisto cinema nacional, aos filmes franceses — esse gentílico sempre despudorado —, ou às primeiras décadas da filmografia do Almodóvar — os ofendidos por um singelo mamilo não sabem o que foi a fase da Movida Madrileña do cineasta espanhol, povoada por freiras lésbicas e adictas e garotos de programa púberes. Em suma, chego à conclusão que a ideia aqui posta pode ser sintetizada pela frase atribuída a Nelson Rodrigues: “Nada mais obsceno do que o rosto humano. Só a cara é indecente e exige a folha de parreira. Do pescoço para baixo, podia-se andar nu”.

Foto de Capa: Ilustração para Agência UVA

Crônica por Daniel Deroza, com edição de texto de João Agner.

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3 comentários em “O pecado original subequatorial

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