Comportamento Crônica

Tudo de novo no Front

O repórter Vinicius Corrêa apresenta o relato do melhor show que já presenciou, Madonna na histórica praia de Copacabana

Desde meus 15 anos, Madonna tem um impacto significativo na minha vida e na minha escuta de música pop. Na adolescência, foi quando me toquei de sua relevância e significado na cultura e arte popular. Obras como “Ray of Light”, “Erotica”, “Confessions on a Dance Floor” são atestados da sua longevidade e importância, não só na música, mas como na minha vida. Como qualquer fã de qualquer artista que seja, o sonho do admirador de música é ver a performance com os próprios olhos e o próprio corpo presente.

Madonna confirmou, depois de muito burburinho, a última data de sua turnê comemorativa de 40 anos de carreira, a celebrada “The Celebration Tour”. No dia 4 de maio, a Rainha iria se apresentar nas caóticas areias de Copacabana, na Zona Sul do Rio, três semanas antes do meu aniversário, dia 22, segundo dia do sol em Gêmeos. Minha presença era confirmada no público de milhões a contragosto de qualquer um que privilegia minha integridade física além de mim mesmo. Ouvi meus pais e familiares falarem do perigo de um show desse e de uma multidão que ainda nem existia. Para mim pouco importava. Vestiria a máscara da coragem para ver uma de minhas ídolas, que eu vejo diariamente em um quadro na parede do meu quarto.

Semanas passaram, dias, horas. Mal dormi no dia anterior e eu acordei as 5:50 da madrugada. Viajei da minha casa, em Mesquita, até o metrô da Pavuna, de Uber, pela Via Light. Encontrei minha amiga Camila, e seu namorado Felipe na estação e chegamos na lendária praia às nove horas da manhã. Na areia fervendo, encontramos um lugar na grade do lado esquerdo da plateia. Sortudos, o nosso desafio era permanecer lá até o final do show. Tudo isso na base do medo; dos assaltos, dos invasores do front sagrado de vista privilegiada, do calor insuportável, da areia invadindo meu corpo, das queimaduras.

Praia de Copacabana às 9:30 da manhã. Visão do público areia do palco que Madonna iria se apresentar. (Foto: Acervo Pessoa/ Vinicius Corrêa)

Como diria Madonna em “Hung Up”, “o tempo passa tão devagar”. Foram doze horas até o show começar, quinze até ele terminar, e umas vinte até eu estar debaixo do meu chuveiro me livrando da imundice. Sobrevivemos com nossos próprios mantimentos trazidos de casa – chapéu, óculos de sol, água congelada, soro de hidratação sabor tangerina, biscoitos, sanduíches, marmitas de macarrão com frango. Camila comprou um leque que salvou nossas vidas, e eu comprei um guarda sol azul de flores. Só saímos uma vez do ambiente, para ir ao repugnante banheiro químico localizado na orla.

O show aconteceu com uns 45 minutos de atraso do previsto. Sobrevivemos a Diplo com seu set barato de formatura de ensino médio, provavelmente de algum DJ brasileiro que ele pegou um pen-drive emprestado. O front cada vez mais apertado, com invasores querendo um lugar privilegiado. A maioria foi linchado por querer chegar na frente de quem está há horas naquele mesmo ponto. Menos uma moça que permaneceu na nossa zona por pirraça e por meio de ameaças ao Felipe e a Camila. “Fãs raíz” também chegaram chegando, mas foram convidados a se retirarem.

Quando o espetáculo começou, com a introdução da esplendida Bob the Drag Queen, meu coração quase saiu pela boca. A emoção era maior que o palco, as passarelas, o Copacabana Palace. Aquele sonho de fã estava acontecendo e a ansiedade me dominou até certo ponto. Até que Ela, a Deusa, aparece. A mãe do Pop. Quando ela aparece naquele círculo do palco, tudo que é negativo dentro de mim evaporou e foi-se embora com a maresia. “Nothing Really Matters”, uma das melhores de seu melhor álbum “Ray of Light” abria a celebração.

Eu nunca fui de chorar com shows ao vivo, sempre havia um bloqueio entre minhas glândulas lacrimais para canções em eventos assim. Mas, Madonna sendo Madonna, rompeu isso com “Live to Tell”, uma de suas faixas mais emocionantes. No segundo refrão, eu me afoguei nas mangas da minha amiga Camila, e chorei feito um bebezão. Antes, minhas lágrimas só caiam quando uma música fazia efeito direto na minha vida, como relacionamentos, inseguranças, anseios, baixa autoestima – mas “Live to Tell” foi o momento de toque profundo no meu coração, com vítimas de AIDS, em sua maioria da comunidade LGBTQIA+ da qual faço parte, nos telões.

Telões do show homenageando vitímas da AIDS, enquanto Madonna apresenta “Live to Tell”. (Foto: Camila Queiroz)

Todas aquelas inseguranças, de autoestima, de personalidade, timidez, aparência, foram embora durante aquelas duas horas. Não pensava em mais nada a não ser na trajetória daquela loira, com mais de 40 anos de carreira, nos dançarinos, na produção, na estrutura, nos telões, interlúdios. Foi o melhor show que eu presenciei. Ela cantando hits que ela nunca apresentou em turnê como “Bedtime Story” e “Bad Girl”, e canções que nunca mais apareceram há décadas em seu repertório, como “Rain”. Tudo valeu a pena.

Eu não tenho tantas histórias para serem passadas a diante. Eu não consigo impressionar ninguém com minhas vivências. Me imagino mudo no “Que História É Essa, Porchat?”. Mas minha história com esse show da Madonna foi maravilhosa, apesar do perrengue que ataca a ansiedade da minha mãe e da minha família. Cheguei em casa às duas e meia da manhã, com alguns arranhões, queimaduras leves no peito, o cabelo completamente destruído, a perna pedindo socorro. Um grande evento canônico na minha vida, que eu jamais esquecerei, e repassarei para próximas gerações. Já penso no julgamento de alguns pelo meu sacrifício, mas a mamãe Ciccone me ensinou sobre arrependimentos em “Human Nature”: “absolutely no regrets” (absolutamente nenhum arrependimento).

Foto de capa: Camila Queiroz

Crônica de Vinicius Corrêa, com edição de texto de João Agner

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