Comportamento Crônica

Annie Ernaux da Praia do Leme

Na crônica, o repórter discorre sobre suas reflexões a partir da leitura de "Paixão simples", clássico da escritora francesa

Por João Agner

Annie Ernaux deve ser canceriana. Com um Google rápido descobri que é de virgem, o que até faz sentido, mas não me agradou tanto quanto uma similaridade direta comigo. Foi isso que pensei assim que terminei minha leitura de “Paixão simples” no último domingo, com a pele fritando sob o sol do Rio de Janeiro na Praia do Leme. Sim, estive na praia. Desde o ano novo tenho sentido a urgência de me conectar com coisas naturais — seja uma cachoeira, um paiol, ou até mesmo algo simples como a praia, o que detesto, mas tenho me forçado a gostar recentemente. Pedi a umas amigas que me acompanhassem para ver o fim de tarde na praia, o que, em algum momento no percurso, resultou em um encontro na Central às 10:30 da manhã para aproveitar o dia inteiro na praia. Não sei como aceitei, mas fui. 

Na praia, iniciei minha leitura de “Paixão simples”, título clássico na bibliografia da francesa Annie Ernaux, e que sempre ansiava pela leitura, mas nunca aconteceu. Essa semana, por algum acaso do destino, esse livro me cruzou, e decidi finalmente levá-lo. Recentemente, tenho lidado com dores românticas. Com 21 anos tudo é muito confuso, conflituoso, embaraçoso e, principalmente, romântico, o que complica o afastamento. Quando me deparei com o livro essa semana, senti que em meio a toda a confusão que vivo no momento, o romance poderia me dar uma luz para o amor novamente. Por isso que decidi levá-lo à praia comigo.

Quando iniciei a leitura, tinha expectativas diferentes do que encontrei. Pelo início do livro, ou até mesmo pela sinopse, imaginava o relato de um amor que deu certo, o que me animava. Queria que o livro me desse ânsia por amor, algo que me falta no momento. Estava enganado. Logo no meio do livro — que tem breves 60 páginas — o romance é encerrado abruptamente. Do meio para o fim, Annie descreve o luto, similar com a trajetória que lido agora. Fui pego de surpresa, e por um segundo até temi que a leitura não fosse tão prazerosa quanto esperava. Pelo contrário. Senti que Annie falava diretamente comigo. Senti que eu tinha dito o que precisava que ela escrevesse. Esse livro tinha que estar nas minhas mãos naquele domingo.

Em certa passagem, Annie diz que “escrever não me impedia, no instante em que parava, de sentir falta desse homem”. Imediatamente me lembrei do ensaio “Porquê escrevo” de Joan Didion, escritora que já discorri sobre múltiplas vezes. O título do ensaio é interessante, já que, na língua original, se chama “Why I Write”, e a sonoridade acaba dizendo “I, I, I”, ou seja, “eu” três vezes, porque, para Didion, escrever é, em sua grande grande parte, o ato de dizer “eu”. Didion escrevia para entender o que não entendia. Ernaux, em certa passagem do livro, diz que não escreve para justificar sua paixão, pois logo identificaria os erros no percurso — algo que me identifico — mas sim para permanecer no tempo em que o romance aconteceu, até que, mais tarde, ansiasse pelo momento em que, ao reler seus relatos, não sentisse nada. Ernaux escreve para saber se é a única a fazer o que faz e sentir o que sente. 

Me encontro no meio termo entre as duas. Não acredito que experiência alguma deva ser apagada, esquecida ou rejeitada, até porque vejo claramente que sou o resultado de tudo de bom e ruim que já me aconteceu — e acredito que todos somos. Não sou muito de anotar em livros, mas nessa leitura senti a necessidade. Em um dos espaços em branco no alto da página, enquanto Annie aguardava o dia em que esse texto não significasse nada para ela, escrevi que “espero que tudo isso ainda seja importante para mim, e que eu nunca esqueça o peso”. É por causa disso que vou seguir amando quem me atravessar.

Queria dizer a Ernaux que ela não é a única. Senti o calor e a agonia de todas as passagens não apenas no relacionamento que me despedi por último, mas em todos que já experienciei. Por mais que o último tenha sido mais significativo, e certamente o mais definitivo, não consigo evitar dizer que não sinto uma dor colossal toda vez que me despeço de alguém. Dessa vez foi diferente, claro. Imagino que daqui para frente, a tendência seja ser pior. Isso me assustaria a um mês atrás, hoje não. O romance nunca é apenas o que nos leva à despedida. Amor é fogo antes de se tornar água.

Muitas pessoas, quando no Leblon, se sentem uma Helena do Maneco. Mas ali, eu era a Annie Ernaux da Praia do Leme, como se fosse o título de um episódio de “As Cariocas” (“A traída da Barra”, “A suicida da Lapa”, “A atormentada da Tijuca”, etc). Assim que terminei a leitura, depois de exclamar que o livro mudou minha vida em duas horas, eu e minha melhor amiga tomamos duas caipirinhas de estômago vazio, o que resultou em conversas existenciais e desconexas, crises de riso e declarações de amor por nossos sete anos de amizade. Deixamos inseguranças e choros de amor ali na areia e fomos para casa, mas sabemos que na próxima vez que voltarmos à praia, elas não estarão ali. A ressaca carrega tudo com ela. 

Em meio à conversa, citei uma canção que gosto muito que pede pela emancipação de um romance, como o desejo de não procurar por seu antigo parceiro assim que se entra em um ambiente, coisa que sempre fiz. No fim da gravação, ela diz “Eu ainda não consigo sentir, mas estou esperando”. Assim que terminei de declamar a música, senti arrepios pelo meu corpo. Era o manifesto físico de uma ausência, vindo de uma cantiga de encerramento. Esse sentimento se despedia de mim como o sol se despedia das nossas cabeças, e os postes de luz espalhados pela orla tomavam conta da iluminação da praia.

O que eu procurava na leitura do livro era uma luz no fim do túnel. Queria que Annie Ernaux me dissesse com um otimismo irritante de uma recém-apaixonada em Paris nos anos 90 e sem o linguajar técnico da minha terapeuta que eu posso e vou amar de novo, coisa que tenho certeza que vou, mas tenho costume de não ver tudo claramente. Conforme a leitura passava e Annie me acompanhava pelo luto — ela no papel, eu em carne e osso — percebi que não precisava ler aquilo para me certificar. Eu só precisava olhar em volta. Em torno de mim, na praia, via os homens e mulheres ali, alguns deitados na areia, outros jogando altinha, dividindo milho, passando protetor, exibindo o corpo e recebendo luz na pele, e sentia que todos esperavam uma nova chance no amor, assim como eu. Pode não ser verdade, mas quis acreditar que sim. 

O parágrafo final do livro diz “Quando eu era criança, o maior luxo para mim eram os casacos de pele, os vestidos longos e as mansões à beira-mar. Mais tarde, passei a achar que o luxo era ter uma vida intelectual. Agora me parece que é também a chance de viver uma paixão, por um homem ou por uma mulher”. Ela está certa. No dia anterior à leitura do livro, escrevi, com as mãos trêmulas sobre efeito do gin, “quero morrer de amor” na parede do banheiro de um bar em Botafogo. Assim que escrevi, senti que tinha algo errado na frase que tanto ensaiei na cabeça antes de escrever. Assim que encerrada a leitura do livro no dia seguinte, percebi qual foi meu erro. Eu não quero morrer de amor. Quero morrer de amar. 

Crônica de João Agner, com edição de texto de Mariana Mota

Foto de capa: Pinterest

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3 comentários em “Annie Ernaux da Praia do Leme

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