Os recentes confrontos no futebol entre equipes brasileiras e bolivianas em competições internacionais, como a Copa Conmebol Libertadores e a Copa Sul-Americana, reacenderam o debate sobre os efeitos negativos dos jogos em grandes altitudes. Enquanto a preparação de um atleta é cuidadosamente planejada por profissionais de excelência para evitar lesões, o que deve ser feito quando fatores extremos, como a altitude de 4.090 metros, entram em campo?
No fim de agosto, o Flamengo foi até o estádio Hernando Siles, situado a 3.600 metros acima do nível do mar, na cidade de La Paz, capital boliviana, enfrentar o principal clube do país, o Bolívar. O jogo valia a classificação para as quartas de final da Copa Libertadores. O confronto terminou com vitória da equipe boliviana, mas com a classificação rubro-negra, já que o time carioca havia vencido o jogo de ida por 2 a 0. No entanto, pôde-se notar um Flamengo exausto já no intervalo da partida. Em vídeos de bastidores produzidos pela FlaTV, equipe de comunicação do clube carioca, diversos jogadores da equipe foram vistos usando cilindros de oxigênio ainda no intervalo, evidenciando o esforço sobrenatural de jogar em condições como essas.
Esse foi o sexto confronto entre Flamengo e Bolívar na história e o terceiro na altitude. Em todos os jogos, o Bolívar saiu vitorioso. Já em condições normais, como no Rio de Janeiro, o Flamengo venceu dois e houve um empate, o que evidencia o desequilíbrio entre as partidas.

(Foto: Reprodução/Conmebol Libertadores)
Até mesmo equipes do país que são tecnicamente mais fracas do que o Bolívar, como o The Strongest e o Always Ready, levam enorme vantagem no histórico de confrontos contra adversários de outros países sul-americanos jogando na altitude. O estádio do Always Ready, o Municipal del Alto, apresenta a segunda maior altitude da América do Sul com 4.090 metros acima do nível do mar. Situado na cidade boliviana de El Alto, o estádio foi escolhido para a última partida da seleção de futebol da Bolívia nas eliminatórias sul-americanas para a próxima Copa do Mundo. O jogo terminou com uma vitória de 4 a 0 sobre a Venezuela, um placar raro para o futebol boliviano.
Em entrevista, o fisioterapeuta Fabrício da Silva, de 49 anos, comentou sobre essa questão. Ele, que trabalha no meio esportivo há mais de 20 anos, falou sobre suas experiências com partidas na altitude e as preparações de pré e pós-jogo dos atletas com os quais trabalhou.
“Fiz o acompanhamento de atletas para jogar em uma das maiores altitudes. Era Potosí, na Bolívia. Não acompanhei o jogo porque não era o fisioterapeuta titular, mas fazia parte da equipe. O trabalho inicial, durante os três dias que tivemos disponíveis por conta do calendário, foi focado na resistência. Fizemos uma alimentação específica e um trabalho isolado com alguns atletas, de acordo com suas posições. Os atletas chegaram na Bolívia apenas algumas horas antes da partida para retardar os efeitos da altitude”, conta Fabrício sobre o procedimento adotado durante o pré-jogo.
O profissional ainda acrescentou o restante deste episódio ao comentar as medidas pelas quais foram tomadas logo após o término da partida.
“No pós-jogo, alguns jogadores já haviam sido selecionados para fazer um ‘recovery’ ativo, mas, por causa dos efeitos da altitude, o número de atletas que participaram diminuiu. Alguns conseguiram fazer pequenos trotes, enquanto outros foram direto para a máscara de oxigênio e repouso absoluto”, explica o fisioterapeuta sobre os cuidados depois da partida.

(Foto: Reprodução/Instagram/@fisio_fabricio)
O risco de lesões também é uma questão importante nos jogos em altitude, e o fisioterapeuta explica que, apesar da parte muscular ser afetada, o maior risco está na parte cardíaca.
“O organismo começa a sentir mais intensamente os efeitos da baixa disponibilidade de oxigênio, iniciando uma condição chamada hipóxia, quando o sangue apresenta pouco oxigênio para distribuir para o corpo. Os efeitos incluem sonolência, dor muscular, fadiga muscular e mental, cefaleia, náusea e euforia. E isso acontece sem o atleta sequer fazer exercício físico. Por ser um esporte que alterna atividades aeróbicas e anaeróbicas, o futebol exige muito da parte cardiorrespiratória. Outro fator é o mental, pois, com a hipóxia, os reflexos, agilidade e capacidade de tomada de decisão começam a ser prejudicados. Existe um risco maior de lesões musculares devido à rápida falta de oxigenação, mas o mais preocupante é a parte cardiorrespiratória”, explica Fabrício.
A questão respiratória é o principal tema quando se fala de altitude, afinal, a parte muscular afeta apenas os atletas. Após o jogo do Flamengo, o treinador da equipe na época, Tite, passou mal e foi atendido pelos médicos do clube ainda na Bolívia. Ao chegar no Rio, ele foi encaminhado ao hospital. Tite sentiu dores no peito, teve dificuldade para respirar e palpitações, além de ter sido diagnosticado com fibrilação atrial, um problema no coração em que os batimentos ficam irregulares e acelerados. Isso pode prejudicar a circulação sanguínea e aumentar o risco de AVC, coágulos e insuficiência cardíaca.
Em entrevista, o médico e professor universitário, doutor Ricardo Martins, de 65 anos, que atua como pneumologista e é mestre na Universidade de Brasília, falou sobre as adversidades que a altitude apresenta.
“Jogos nesse tipo de ambiente não são impossíveis, mas exigem que os participantes, não habituados ao local, tenham tempo para se adaptar, o que é impossível no calendário do futebol sul-americano, especialmente no brasileiro. O tempo de adaptação varia de pessoa para pessoa. Um exemplo são os alpinistas, que conseguem passar dias em altitudes elevadas porque têm tempo para se adaptar”, comenta Ricardo.

(Foto: Reprodução/FAHUB)
O médico ressalta que condições adversas também são encontradas em locais a nível do mar e podem causar danos à saúde dos atletas. Ele cita o exemplo de Brasília, onde ocorreram algumas partidas recentemente.
“Trata-se de um assunto complexo (a altitude boliviana), pois o ambiente de algumas cidades no Brasil também exige adaptações. Dou o exemplo de Brasília, que, no momento, enfrenta um clima com umidade do ar abaixo de 15% e muito calor”, conta Ricardo Martins, referindo-se aos jogos do Campeonato Brasileiro no último fim de semana (28 e 29 de setembro).
O debate sobre a altitude não deve parar em 2024. As equipes bolivianas têm estado cada vez mais presentes nas fases decisivas das competições internacionais, e a tendência é de que continuem usando a altitude como vantagem. O estádio Municipal del Alto, casa do Always Ready, deve ser a sede da seleção boliviana até o final das eliminatórias para a Copa do Mundo de 2026, ainda mais que há uma chance real de classificação para o torneio pela primeira vez em décadas.
Por outro lado, no futebol entre clubes, mesmo com a Libertadores e a Copa Sul-americana ainda permitindo estádios em condições extremas como essas, a crescente repercussão negativa das condições sobre-humanas pode criar um impasse entre a Conmebol e a Bolívia.
Ao mesmo tempo, entende-se a necessidade e o direito de equipes bolivianas poderem realizar e sediar eventos esportivos de caráter internacional até pela inclusão no bloco continental. Certa vez, o presidente do Always Ready, Andrés Costa, comentou sobre o direito do clube em poder jogar partidas em casa, mesmo a 4.090 metros de altitude, nas competições organizadas pela Conmebol.
“A Copa se joga em casa”, afirmou o presidente do Always Ready ao ser questionado em relação à altitude.

(Foto: Divulgação/Always Ready)
Enquanto isso, os clubes continuarão enfrentando altitudes e condições adversas se quiserem avançar nas fases eliminatórias contra equipes bolivianas. Esta situação não reflete a real qualidade dos times, mas se torna uma desvantagem humana imposta pelas condições da natureza e a Conmebol não parece estar disposta a interferir nessa questão durante os próximos meses.
Foto de capa: Divulgação/Always Ready
Reportagem de João Gabriel Lopes, com edição de texto de Gustavo Pinheiro
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