Por João Agner
1. Estávamos um de frente para o outro, na mesa do restaurante, quando me perguntou sobre minha escrita. Minha primeira reação foi rir, e logo pedi para que mudasse de assunto. Ele insistiu, então pedi um drink e contei a história como sempre conto: escrevo desde criança, em qualquer formato. Com o tempo percebi que esse era o único talento que tinha, e a coisa que mais gostava de fazer no mundo. Ele riu, “esse não pode ser seu único talento”. Eu confirmei, no tom depreciativo que projeto com maestria, “escrever é tudo que sou”.
Devia ter imaginado que, por termos acabado de nos conhecer, ele teria curiosidade em saber mais sobre mim, da mesma forma que eu tinha. Ingenuidade a minha pensar que não seria questionado sobre o que exponho como meu maior prazer. Me perguntou sobre meu conto, que estava fixado no meu Instagram. Minha primeira reação, de novo, foi cobrir o rosto com as mãos e rir. Dessa vez deixei claro, “fico com vergonha de falar sobre isso”. Ele riu, achou absurdo. Senti que não teria como fugir, e expliquei por alto sobre como foi o processo. Ele perguntou se eu escreveria um poema para ele, rindo, e eu disse que poderia. Mal sabia ele que eu o olhava e já via poesia. Não como se eu já estivesse obcecado ou apaixonado, mas porque é assim que minha cabeça funciona, meio inexplicável. Às vezes já penso em rimas, ou uma conversa se torna prosa. Uma piscada de olhar se torna a frase de abertura de um conto.
Encerrando o assunto, me perguntou por quê escrevo. Cogitei um terceiro drink, mas desisti. Não me lembro da resposta mas tenho claro o que gostaria de ter respondido: minha escrita é tudo que tenho de mais valor. Ficamos ali na mesa por mais um tempo, rodeando outros assuntos. Terminamos a noite com alguns links de escritos meus encaminhados para seu WhatsApp. Quando a atendente nos trouxe a conta, me perguntei se poderia pagar com um poema.
2. Penso neste momento com frequência porque a quatro meses atrás eu sabia exatamente quem era, e simplesmente escolhi não responder. Agora estou tão perdido. Vejo um reflexo diferente em cada espelho que olho. Me porto de forma diferente em cada encontro social, não sei se meus amigos me veem de forma natural. Credito parte disso ao fato de eu estar mudando constantemente, coisa tradicional de se ter vinte anos, mas me pergunto se em meio a todas essas mudanças, naturais ou não, não estou me perdendo. Será que realmente sei o que quero ser?
Do meu terraço observo a cidade de cima como sempre faço. Queria que esse prédio fosse mais alto, para que pudesse ver mais além, mais longe. Com o que consigo ver, existem buracos entre os prédios, devem ser casas ou parques. Não gosto muito disso, queria que fosse tudo prédio. Prédio prédio prédio, prédio atrás de prédio. Acho eles tão lindos. Queria que perto de mim tivessem mais deles. Um mar de janelas acesas, tanta vida em tão pouco espaço. Me pergunto se seria mais feliz em outro lugar. A vida é maior que a cidade em que nasci. Me pergunto se seria mais feliz em São Paulo. Todos dizem ter minha cara, mas nunca fui, não tem como saber. Sempre acho que tudo que não é meu agora, seria melhor, mania minha.
3. Tenho estado em um bloqueio de escrita desde essa época, e tem se intensificado com o tempo. Acredito ser um bloqueio criativo, antes o problema fosse só escrever. Não consigo idealizar nada, nem um conceito. Rimas não tem funcionado direito. Isso tem me deixado ansioso, acorrentado, me criticando mais. Não brinco quando digo achar que escrever é meu único talento. Às vezes penso tanto no processo que tenho medo de um dia isso me consumir, e eu não conseguir mais escrever. Me afogar em tantas palavras e sílabas, parágrafos e estrofes, todos claustrofóbicos dentro da minha cabeça. Algumas pessoas desejam bloquear os pensamentos, eu só quero acessá-los. Não sei quem sou sem a escrita, e tenho medo de realmente não ser nada sem isso.
4. Nos últimos dias, tenho revisitado muitas coisas que costumava gostar e consumir com frequência, principalmente discos. Tenho memória musical muito forte e consigo lembrar claramente de momentos da minha vida com base no que escutava na época, ou lembrar de cenas quando ouço certas canções. Dessa forma, consigo acessar todas as versões de mim que já fui um dia. Penso em tudo que deveria ter feito enquanto era outras pessoas. Deveria ter feito mais coisas como meus colegas da escola faziam. Deveria ter ignorado o trauma, saído da biblioteca, passado mais tempo no recreio. Deveria ter usado anfetaminas, ameaçado cometer um crime, fugido de casa e voltado horinhas depois. Deveria ter mentido mais. Não tenho mais esse privilégio. Perdi meu tempo. O que eu posso fazer com quem ainda vou ser? O que fazer com esse tempo que ainda não é meu?
5. Nesse tempo meio perdido, comprei um cigarro. Devo ter fumado cinco cigarros na vida, todos com a desculpa que estava bêbado. Pensei que poderia adicionar algo à minha personalidade perdida, considerei que quase todos os meus ícones fumavam também. No mais, queria sentir alguma coisa, mesmo que fosse o cinza me preenchendo. Estava na Feira de São Cristóvão no início do mês passado e comprei uma unidade de Camel por dois reais com uma moça que vendia doces e pod. Era o segundo que comprava com essa finalidade, o primeiro em uma noite mais triste e menos barulhenta. Paguei no pix e retornei aos meus amigos com ele, já aceso. Ofereci, ninguém quis. Senti o cinza nos lábios assim que o cigarro os tocou, e por mais que estivesse relativamente familiarizado com ele, nem aguentei tragar direito. Tossi com força, todos riram. Me questionei porque estava fazendo aquilo. O cigarro mal colocado entre os dedos, como se não coubesse ali, mesmo que não exigisse muito para que ele descansasse na minha mão. Tentei o segurar então com o indicador e o dedão, e foi mais estranho ainda. Alguma coisa estava errada naquela cena. Joguei no chão e pisei fundo, e foi a última vez que fumei. Minha tia-avó morreu de tanto fumar. Todos estamos sempre querendo morrer aos poucos, não? E sempre sem fazer doer.
6. Percebo um ciclo formado. Lembro que em abril do ano passado estava na mesma situação, perdido, e acabei ficando loiro, me encontrando. Em setembro, não sabia mais o que fazer. Em novembro já estava bem. Em janeiro eu sabia exatamente o que queria para o ano inteiro, hoje não sei como chegar ao meu aniversário. Sinto que nossa existência apenas consiste em nos perder e nos encontrar novamente. Se perder e se encontrar, se perder e se encontrar, se perder e se encontrar. Onde fui visto pela última vez? Qual a recompensa? Tem uma canção do Pato Fu chamada “Perdendo Dentes” que diz, “Pouco adiantou acender cigarro, falar palavrão, perder a razão. Eu quis ser eu mesmo, eu quis ser alguém mas sou como os outros que não são ninguém. Acho que fico mesmo diferente quando falo tudo o que penso realmente. Mostro a todo mundo que eu não sei quem sou, e uso as palavras de um perdedor”. Acho que nunca vai chegar o dia no qual saberei quem eu sou inteiramente. Vou me perder muitas vezes antes, vou perder muitas vezes. Ficarão muitas palavras de perdedor no caminho.
Sinto que essa é minha crônica mais anti-crônica, à la Victor Heringer, grande referência minha, seguindo um fluxo de consciência na madrugada, agora 1:19 da manhã, tentando captar ao máximo para fugir do bloqueio. Tenho tendências melancólicas naturalizadas astrologicamente em mim, agora intensificadas com o mercúrio retrógrado. Não sei o quanto disso é produto de muito overthinking, mas é honesto com tudo que encaro agora. Talvez a origem dessa perda de mim mesmo tenha relação com meu bloqueio de escrita, e agora que isso começa a se distanciar, talvez eu possa começar a me procurar de novo. Não sei quando vou ver o rosto de sempre quando encarar um espelho novamente, mas espero que seja logo. Espero que na próxima vez que escrever aqui, eu tenha encontrado algum pedaço de mim novamente.
Foto de capa: Reprodução/HBO
Crônica de João Agner, com edição de texto de Mariana Motta
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