Comportamento Crônica

De novo, em Botafogo

A sensação de déjà vu ao passar por lugares afetivos é sempre boa, e nessa crônica, Hunter fala sobre seus momentos nostálgicos no bairro

Quando fazia gastronomia em Botafogo, tinha como costume acordar mais cedo pra tomar café na barraca do Seu Inácio, flamenguista fanático, que teve o desprazer de me ter como cliente e colega eu, tricolor mais “louca da cabeça”, que espalhou pela rua inteira que ele era Vasco. Coitado. Mais ainda quando ameacei dar uma caneca do time pra ele, que respondeu a plenos pulmões, “vou é deixar pra exu na encruzilhada!”

Na mesma barraca, conversava com senhoras, ensinava a esconder traições via WhatsApp dos seus maridos e sempre falava com um gari da rua, Seu Guaraná, homem de Ogum, que mesmo que não seja meu orixá, é muito presente em minha vida. Sempre levava um doce que fazia na faculdade, um daqueles caríssimos que nenhum de nós poderia pagar. Ele me dava um beijo na bochecha por estar tão bom, comíamos alegres, repartindo pra todos em volta e íamos trabalhar. Tempos antes da minha formatura, ele me disse, despretensioso, frases que me marcaram, talvez porque seriam as últimas que ouviria dele: “Orixá vai te dar tudo que você quer”.

Foi aí que semanas passaram e eu vi que o que eu queria era escrever. Cozinhar foi por necessidade, e eventualmente afeto. Esses dias por Orixá passei de novo em Botafogo. Doei pertences a um moço também de Ogum que perdeu tudo na chuva e passei em casas de artigos religiosos pra comprar miçangas para fazer fios de contas para os meus filhos, não de sangue, de santo e agora, de coração.

Orixá me trouxe aqui e digo não só por Botafogo, mas sobre meu caminho. Sentei numa cafeteria, gastei um dinheiro que não tinha por uma péssima mania de não perguntar preços, lembrei dos meus tempos no bairro, quis voltar no tempo, e ouvi dois ricos conversando poucos minutos de pegar o ônibus pra casa, “mil reais pra mim é nada”.

Na janela do ônibus vi uma silhueta: Seu Guaraná recolhendo a lixeira, e então fiz essa crônica. Dizendo que fui de novo em Botafogo, ouvindo conversas dos outros, falando dos meus afazeres e disfarçando o real motivo do porquê escrevo, pra falar com ele:

Seu Guaraná, se o senhor está lendo isso, se o senhor lembra de mim, saiba que estava certo. Segui seu conselho e Orixá proveu! Fluminense é campeão e ainda não compramos a caneca do Vasco pro Seu Inácio.

Foto de Capa: Pexels

Crônica por Hunter, com edição de texto de João Agner

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Sobre Hunter

Eu me escolhi chamar Hunter e usar a arte como refúgio. Escrevo ficções especulativas; em 2021, publiquei Colmeia e A outra, porém após problemas com a editoração retirei A outra de publicação. Em 2022 publiquei Rompendo Akai Itos, um livro de poesias que fala sobre rompermos laços tóxicos. E hoje em dia, sou formada em gastronomia, estudo jornalismo com uma bolsa na UVA e sou repórter na Agência UVA, onde tenho minha própria coluna de crônicas e cuido das matérias culturais e internacionais. E no meu Instagram @hunterlivros, monto um acervo de fotos estilo 2000 junto de meus textos chamado "Caixinha de papel debaixo da cama".

2 comentários em “De novo, em Botafogo

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