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PL 1904\24: especialista debate sobre projeto de lei que equipara aborto a homicídio

Pesquisadora da UFOP e da Rede Brasileira de Mulheres Cientistas fala com exclusividade à Agência UVA

No último dia 12 , o presidente da Câmara dos Deputados Arthur Lira (PP-AL), propôs a votação do Projeto de Lei 1904/24. O código determina que meninas e mulheres que realizarem aborto após 22 semanas de gestação serão condenadas por homicídio, com pena de seis a vinte anos. Além disso, o projeto considera que, mesmo em casos de estupro, a vítima será culpada.

De acordo com os dados divulgados em 2023 pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), foram registrados 74.930 casos de estupro, sendo 61,4% deles praticados contra crianças entre 0 e 13 anos de idade. No mesmo ano, o Brasil registrou o maior número de casos de violência sexual da história. Além dos números alarmantes, dados do relatório “Violência contra Meninas e Mulheres”, feito pelo FBSP, a cada oito minutos, uma mulher é estuprada é no Brasil. 74,5% dessas vítimas são menores de idade.

Para entender mais sobre o assunto, convidamos a pesquisadora da Universidade Federal de Ouro Preto e membro da Rede Brasileira de Mulheres Cientistas e do Observatório Sul-Sudeste, vinculado ao INCT Caleidoscópio, Débora Lopez. Confira a entrevista exclusiva:

Agência UVA: Como surgiu a ideia do Projeto de Lei 1904/24 e quais são os principais objetivos dela na realidade de meninas e mulheres brasileiras?

Débora Lopez: Esse é um projeto diretamente vinculado ao processo de ascensão da direita e do conservadorismo no Brasil, que temos observado nos últimos anos. A potencialização dessa ascensão se fortaleceu muito nas últimas eleições no Congresso Nacional.

O projeto nega direitos básicos das mulheres e se orienta principalmente por questões religiosas e ideológicas. A argumentação contrária ao aborto legal na Câmara dos Deputados brasileira é historicamente conduzida a partir de argumentos religiosos. Nos últimos anos, houve alguma apropriação de um discurso com caráter científico, mas a maioria dos argumentos são distorcidos e voltados a uma perspectiva única sobre o momento em que a vida é concebida no feto. Isso não contempla os avanços mais recentes da ciência e não considera a mulher como uma pessoa.

Quando se fala do direito à vida, a mulher ou a menina que foi abusada não é considerada no debate; só se considera o direito à vida do feto. Além disso, esse projeto não considera as mulheres e meninas violentadas como vítimas, mas trabalha para colocá-las no banco dos réus, criminalizando e utilizando essas mulheres e meninas. Ele obriga crianças a levarem a termo uma gravidez que pode colocá-las em risco, tanto físico quanto psicológico.

Na verdade, este projeto surge agora, nessa votação do regime de urgência e no debate público mais recente, como uma estratégia para atingir a opinião pública de grupos extremistas. Busca dialogar com a bancada religiosa, conhecida como bancada da Bíblia na Câmara dos Deputados, e construir embates políticos usando os direitos das mulheres como moeda de troca.

AUVA: Se o projeto de lei obtiver sucesso, como isso vai influenciar em futuras políticas públicas voltadas para meninas mulheres no Brasil? 

DL: O projeto de lei altera imediatamente as políticas públicas, não apenas influenciando futuras políticas, mas também retirando de imediato os direitos das crianças violentadas. É importante considerar que esses direitos são alterados a partir da 22ª semana de gestação, mas, principalmente, quando falamos de crianças, estamos lidando com a identificação de gestações tardias. A criança não sabe o que é uma gestação acontecendo em seu corpo e não entende as mudanças que estão ocorrendo. O corpo de uma criança responde de maneira diferente, e isso tudo afeta, além do fato de que a maioria dos casos de abuso acontecem com pessoas conhecidas, muitas vezes dentro das casas dessas crianças. Elas são ameaçadas para manter segredo sobre a violência sofrida.

As mulheres também são frequentemente ameaçadas para que guardem segredo sobre a violência, e revelar uma gestação muitas vezes implica contar o que aconteceu, o que gera medo nessas mulheres e meninas. Devemos lembrar que as crianças respondem por 60% dos estupros que acontecem no Brasil atualmente. Além da retirada imediata de direitos, existe o potencial de impacto na criação de políticas públicas, espaços de acolhimento, normas de atendimento e na formação de profissionais capacitados para acolher vítimas de violência sexual, bem como nas ações de educação sexual no país.

Esse projeto está vinculado ao crescimento da direita no Brasil, pois o movimento conservador se opõe aos direitos reprodutivos das mulheres, que são diretamente atacados por essa PL. Portanto, é necessário reconhecer que existe um retrocesso real que precisamos combater.

Art. 128 do Decreto Lei 2848/40 permite aborto em casos de estupros da mulher com seu consentimento ou, quando incapaz, de seu representante legal.
(Foto: Pexels)

AUVA: Muitas pessoas estão se manifestando nas redes sociais contra a aprovação do PL. Você acredita que esse movimento pode barrar a lei?

DL: As manifestações são importantíssimas porque revelam o que pode ser especulado. Não se trata apenas de dizer que as pessoas são contra algo, mas de observar a quantidade de entidades e pessoas se manifestando, o volume de postagens nas redes sociais e a quantidade de pessoas que foram às ruas. Seja um movimento online ou nas ruas, a mobilização é fundamental porque demonstra que as mudanças propostas não são aceitas coletivamente. Nosso país não aceita esse retrocesso, e as pessoas estão unidas para garantir a manutenção dos direitos das mulheres e meninas.

Nos últimos dias, a movimentação ocorreu tanto nas redes sociais quanto em várias cidades, onde as ruas foram ocupadas. As manifestações são claras em relação ao desacordo com o que propõe esse projeto de lei. Não se trata apenas de adequar a proposta, mas de retirar esse projeto de pauta, de não criminalizar as mulheres e de evitar a revitimização dessas mulheres e meninas.

O objetivo é a expansão do aborto legal e o reconhecimento dos direitos dessas vítimas. As mobilizações exigem a construção de políticas públicas de apoio às vítimas e de combate à violência. A questão não é simplesmente aumentar a pena do estuprador; é garantir que uma mulher ou menina não corra o risco de ser julgada e presa por ter feito um aborto. A discussão é complexa e não pode ser reduzida a um número, pois deve considerar as pessoas envolvidas nesse processo.

Registros da manifestação na Avenida Paulista.
(Foto: Paulo Pinto /Agência Brasil)

AUVA: Muitas meninas menores de idade são estupradas e, mesmo assim, não conseguem o direito de abortar, mesmo sabendo que é concedido por lei em nesses casos. Como negar esse direito a elas pode trazer consequências para suas vidas e para a vida da futura criança?

DL: Os impactos na vida dessas crianças não podem ser medidos, na verdade. Falamos muito dos impactos na saúde física, pois os corpos de meninas de 10, 11, 12, 13 anos não estão preparados para gestar uma criança. Elas podem sofrer consequências graves, chegando até mesmo a um aumento na chance de morte materna. Portanto, o impacto no corpo dessas meninas é muito grande.

Considerando que essas meninas serão atendidas com muita precariedade, já que o estupro de crianças é predominante nas classes mais pobres, percebemos que esses corpos, que necessitam de maior atenção, receberão um atendimento mais precarizado. Isso resultará em consequências ainda maiores para a saúde física dessas crianças.

“Além disso, exigir que uma menina tenha o filho do seu agressor é impor a ela uma lembrança constante e permanente da agressão que sofreu. Devemos lembrar que são crianças e, posteriormente, mulheres que não terão, necessariamente, um apoio psicológico para lidar com isso. Como sociedade, não temos o direito de impor a maternidade a ninguém. As mulheres e meninas devem ter o direito de decidir sobre suas vidas e seus corpos”, ressalta Débora

Quando pensamos em meninas de 10, 11, 12, 13 anos, impor que levem a termo essa gestação é retirar delas o direito à infância. Colocamos essas crianças numa condição de maior propensão a doenças psicológicas diversas, que provavelmente as acompanharão por toda a vida, muitas vezes sem o devido acompanhamento e atendimento. Considerando a tendência de depreciação das políticas públicas relacionadas aos direitos da mulher e ao atendimento à mulher, caso esse projeto de lei seja aprovado, qual política pública garantirá um atendimento psicológico e acompanhamento de saúde mental para essas meninas que serão obrigadas a se tornarem mães?

Desestruturamos o sistema e impomos uma obrigação a meninas que deveriam ser apenas crianças, que em um primeiro momento já não deveriam ser vítimas de violência sexual. Quando passam por esse momento tão difícil que é a violência sexual, não só não são acolhidas, como são acusadas.

Foto de capa: Pexels

Reportagem de Juliana Ramos, com edição de texto de Victoria Muzi.

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