No Centro do Rio de Janeiro, a história tem desabado — literalmente. Entre fachadas que se esfarelam e estruturas comprometidas, casarões centenários enfrentam o abandono silencioso e o descaso do poder público. A cada novo episódio de desabamento ou incêndio, como os que atingiram construções na Rua do Livramento e na Rua Senador Pompeu entre março e abril deste ano, a cidade se vê diante de uma tragédia anunciada e reincidente.
A situação se tornou tão alarmante que moradores da região ainda vivem em constante estado de alerta. Ao redor dos casarões incendiados e desabados, prejuízos materiais se acumulam e o sentimento de insegurança se espalha. Comerciantes da região contabilizam perdas superiores a R$ 50 mil em alguns casos, que operaram seus negócios por dias com a assistência de geradores ou com o uso de velas. Carlos Alberto, 62 anos, morador de um desses edifícios em estado de abandono há mais de 15 anos, lamenta a inércia do poder público:
“Eles esperam uma tragédia acontecer para só então tomar alguma providência. Isso quando tomam”, desabafa o aposentado, recordando de um imóvel vizinho com madeiras soltas e risco iminente de queda.




“Os bares, a barbearia, a peixaria… todos tiveram muito prejuízo. Teve gente com a energia cortada durante dias”, comenta Carlos, sobre os impactos econômicos para os pequenos negócios locais.
Quando a tragédia encontra o descaso
A arquiteta Roberta Mendes, integrante da Comissão de Assuntos Urbanos da Câmara Municipal do Rio e assessora de Políticas Públicas do vereador Pedro Duarte (NOVO-RJ), explica que o problema vai muito além do visível. Muitas vezes, segundo ela, os proprietários aguardam o desabamento para vender o terreno, pois não tem mais condições de manter o imóvel em pé.
“A combinação entre burocracia sufocante, espólios mal resolvidos, ausência de fiscalização e falta de incentivos econômicos reais paralisa qualquer chance de revitalização”, aponta a especialista.
Apenas na região do Reviver Centro, Reviver Cultural e Porto Maravilha, a Prefeitura do Rio identificou recentemente 259 imóveis em aparente estado de abandono. Os dados foram apresentados em audiência pública da Comissão, presidida pelo vereador Pedro Duarte, e repassados à Defesa Civil, responsável por realizar vistorias nos imóveis e notificar os donos. Apesar dos riscos, boa parte desses edifícios ainda abriga comércios ou moradores, por vezes de forma irregular.
“A ausência de uma política habitacional que incorpore incentivos reais à moradia no centro da cidade alimenta esse ciclo de decadência”, observa Roberta.
Programas de papel e promessas em construção
Na tentativa de reverter esse cenário, a Prefeitura lançou o programa Reviver Centro Patrimônio – Pró-APAC Cultural, voltado à reabilitação de imóveis na região em áreas protegidas por Áreas de Preservação do Ambiente Cultural (APACs). A proposta inclui uso misto — residencial, comercial e cultural — com concessão de imóveis a investidores privados via leilão judicial, após desapropriação e subsídios para reforma. A ideia, no papel, é viável. Mas Roberta diz que é importante ter cautela nessa situação.
“O que não falta no Rio são planos bonitos que não saem do papel. O desafio é garantir agilidade no licenciamento, segurança jurídica ao investidor e fiscalização efetiva”, alerta a arquiteta.
A Comissão de Assuntos Urbanos também avançou com projetos de lei que visam desburocratizar e incentivar o reaproveitamento desses imóveis. Entre eles, o PL Complementar nº 23/2025, que autoriza obras emergenciais e até desapropriação em caso de abandono, cobrando os custos dos proprietários posteriormente.
Entre o tombamento e o esquecimento
Os casarões tombados, em especial, enfrentam um paradoxo. São protegidos por lei, mas sem suporte efetivo para conservação. A burocracia e a lentidão de pareceres técnicos de órgãos como o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e o Instituto Rio Patrimônio da Humanidade (IRPH), tornam qualquer tentativa de restauração um verdadeiro labirinto jurídico.
Enquanto isso, a paisagem do Centro histórico vai se convertendo em cenário de escombros. A cidade coleciona marquises instáveis, estruturas condenadas e uma arquitetura sufocada pelo descaso. A pressão da sociedade civil, da mídia e de especialistas tem surtido algum efeito. Mas a urgência não permite mais adiamentos.
“A boa política não espera a tragédia; antecipa e previne. O tempo do improviso já acabou”, afirma Roberta.
Se não houver uma articulação sólida e contínua entre poder público, iniciativa privada e sociedade, o Rio continuará perdendo, tijolo por tijolo, a memória de seu passado — e a possibilidade de um futuro mais digno para quem vive em seu coração urbano.
Foto de capa: Raphael Lopes/Agência UVA
Reportagem de Raphael Lopes, com edição de texto de Gabriel Ribeiro e Karla Maia
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