Esporte Geral

Circuito profissional, emoções amadoras

Texto e fotos de Luana Ucha

A trajetória da aluna de jornalismo e repórter da Agência UVA, Luana Ucha, ao participar de uma prova internacional

Dia 28 de setembro, sexta-feira. Faltando, exatamente, dois dias para a prova mais difícil que eu poderia fazer na minha vida até o momento, a L’étape Brasil, analisei o que tinha planejado para o último fim de semana do mês. Diante das outras provas que fiz e que, de certa forma, fui bem, ultrapassando meu recorde pessoal, eu perdi a capacidade de entender se estava certa ou não de ter tomado a decisão de participar de uma prova de nível profissional. Então, comecei a refletir.

A L’étape Brasil é patrocinada pelo mais tradicional evento de ciclismo profissional do mundo, o Le Tour de France. A prova, que surgiu em 1903, conta com 20 estágios, em 22 dias de duração, com apenas dois dias de descanso. Apesar de conter paisagens lindas, o cenário pode enganar, chegando a ter, em alguns casos, subidas de até 30° de inclinação. De todo modo, é uma prova que chama a atenção não só dos franceses, mas também de países que fazem fronteira com a França, como Itália, Bélgica e Espanha.

Tamanha devoção e aumento do número de ciclistas amadores, em 1993 foi lançado o L’étape du Tour, evento que permite ciclistas entusiastas e amadores a participarem de um estágio da prova do Tour de France. A corrida conta, hoje em dia, com mais de 13 mil atletas, em mais de 50 países do mundo. Não sendo diferente, o Brasil conseguiu com que a iniciativa privada se juntasse com a Amaury Sport Organisation (ASO), trazendo a prova para o país em 2015, sob o nome de L’étape Brasil by Le Tour de France.

A prova aconteceu três vezes na cidade de Cunha, São Paulo. Com o sucesso, hoje ela é considerada um dos maiores eventos de ciclismo da América Latina. Meu sonho sempre foi fazer parte de alguma prova em que eu pudesse, ao menos, fingir ser uma ciclista de porte profissional. Quando as inscrições foram abertas, notei o nervosismo em saber o ambiente da prova. Mas, ao invés de me estressar de antemão, senti uma leveza ao me deparar com o novo local do evento. Em 2018, a L’étape aconteceria em Campos do Jordão, cidade localizada há cerca de 337 quilômetros do Rio de Janeiro.

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Treze mil atletas participam atualmente da prova Foto: Arquivo Pessoal

Os treinos iniciaram visando duas competições: Gran Fondo New York Brasil (GFNY Brasil) e L’étape Brasil. Quando caí na primeira prova, em agosto, pude entender que teria alguns problemas para enfrentar, antes da segunda competição. Como não faço parte de uma assessoria, me asseguro de ter sempre o que me faz bem perto do meu controle, assim, estabelecendo de fato o que cada dia pode significar para o meu corpo e o quanto posso capacitá-lo. Por estudar de manhã, criei um plano de treino em que pudesse praticar às tardes. Variando entre ciclismo indoor e musculação na academia, minha ansiedade era desgastada em pedaladas compridas nos fins de semana e por dias, penosa, como subir a Vista Chinesa e Guapimirim.

Com exatos quatro meses de preparação, entendi o meu devaneio na manhã de sexta-feira. Fui para a faculdade apreensiva. Eu não sabia ao certo quantas horas ia demorar para viajar. Me questionava se chegaria muito tarde, se conseguiria dormir ao longo do caminho, se a bicicleta estaria intacta ao chegar e se minha mente tinha o poder de focar para o que enfrentaria. Ou seja, pensei muito ao longo daquele dia. Posso ver, hoje, que nada era além de um sintoma de nervosismo pré-prova.

Cheguei em Campos e pude perceber o clima de prova no ar. Havia ciclistas em todos os lugares, em todos os carros. Alguns estavam andando perto de restaurantes, outros estavam nas feiras do evento. Uma pequena parcela, ousava pedalar, apesar do relógio marcar quase 22 horas. A cidade brilhava, mas não apenas devido às luzinhas, mas pela euforia de participar de um evento tão grande. Campos do Jordão estava recebendo, naquele momento, o início de algo que mudaria todos os setembros da pequena cidade chocolateira.

Um dia antes da prova

Depois de uma longa noite de salada, picanha, frio e sonhos conturbados, acordei faminta pelo dia que se seguiria. Um café da manhã digno de atleta foi posto no meu prato. Acho que todos entram em consenso ao ingerir bem mais do que é preciso em dias antes de corridas. Eu, aproveitando a deixa, me permito o bolo de chocolate, mesmo sabendo que não ficaria com apenas uma fatia. Após longas colheradas e conversas com a treinadora, fui à feira oferecida pelo evento. Nela, havia marcas patrocinadoras que fazem sucesso entre os ciclistas e revendedores. Desde os novos lançamentos da Cannondale, até venda de géis de carboidrato, houve uma parte que me chamou a atenção –  a área de massagem e recuperação muscular.

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Uma área de massagem e recuperação muscular foi preparada para os competidores Foto: Arquivo Pessoal

Assumo que minha percepção pelo ato é um pouco duvidosa, mas depois de dias de exercício, com tensões no músculo, optei por permitir um contato maior entre as mãos pesadas de uma massagista e minhas pernas sensíveis. De longe, imaginei uma sessão de sofrimento, mas foi um estímulo para o treino que se seguiria. Após longa dúvida entre praticar ou não, decidi enfrentar algumas subidas perto da pousada em que fiquei hospedada. Senti tudo fluir em minhas pernas e me senti voando nos planos. Torci para estar melhor do que nos treinamentos, mas só teria certeza no dia seguinte. Após uma tarde suada, de briefing pré-prova, muito chocolate quente e massa, fui deitar apreensiva. As horas estavam ficando curtas e minha ansiedade estava aumentando.

O grande dia

Eram cinco e quinze da manhã. Estava frio em Campos do Jordão, meros 16°C. Acordei com uma batida na porta antes do meu despertador tocar. Era meu pai, que sempre me acompanhou nas provas e treinos programados, como o da Safetti, empresa de roupas de ciclismo de origem italiana, com uma franquia na Barra da Tijuca, mantida por Anderson Zomer, campeão nacional de ciclismo. Esse passeio oferecido pela empresa, de 80km, foi uma das primeiras preparações longas que fiz quando decidi entrar para o esporte. Naquela manhã, percebi que fui mais longe do que já pude ir.

Café da manhã improvisado e algumas idas ao banheiro tornaram meus pensamentos em pequenos sentimentos de tensão, medo e inquietação. Apesar de estar, relativamente, perdida no espaço-tempo naquele momento, me vesti e preparei a bicicleta para os longos 117 quilômetros de muita subida. Eu admito que sempre me questiono o motivo de me inscrever em provas de longa distância. Talvez seja porque nunca tive a chance de treinar curtas distâncias em contra-relógio. De volta à prova, me dirigi à largada. Muita gente. Capacetes próximos uns dos outros e diversas bicicletas, de todas as marcas possíveis e cores imagináveis. Minha Cannondale verde ficou entre as ninjas pretas da marca Trek e Specialized. Uma pressão bateu em meu peito, e sim, fiquei incomodada.

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Na largada, bicicletas tomavam as ruas de Campos Foto: Arquivo Pessoal

Meu pai estava me filmando e fotografando. Bancando de paparazzo, me divertiu a ponto de me acalmar por um tempo. Quando as horas se resumiram em segundos, minha mente veio em branco. A contagem regressiva chegou e clipei na bicicleta. Andando pelas ruas de Campos, me senti uma atleta no verdadeiro Tour. Pessoas nas varandas dos hotéis, crianças correndo nas ruas em comemoração e palavras de incentivo fizeram boa parte daquela competição.

Tive alguns imprevistos que não pensei que teria após minha grande preparação. Meu Garmin, aparelho que marca distância e altimetria por meio de GPS, não contou os quilômetros que eu estava rodando. Esqueci de colocar o mapa da prova no quadro da bicicleta. Já que estava sem o Garmin para me ajudar na distância, me restou perguntar aos voluntários quantos quilômetros já havia feito. Além disso, preparei uma câmera para gravar meu percurso. Digamos que ela funcionou, mas o primeiro quebra mola foi o suficiente para que ela caísse e gravasse somente minhas pernas. Só me restou ignorar.

Não me preocupei porque o dia estava lindo. Meus pensamentos estavam guiados em terminar aquele desafio, sem pensar em desistir o mais rápido possível. Muitos gritos de “esquerda” e “passando” em minha orelha, muita água e energético depois, cheguei no quilômetro 70 pensando em morrer. Estava exausta. Dei uma parada para respirar e ignorar as câimbras. Sempre subestimei o uso do sachê de sal, mas me rendi e coloquei tudo na boca. Não foi uma das melhores sensações que tive, mas o alívio veio rápido, totalmente o oposto daquela competição.

Ao menos, eu estava devagar. Por surpresa, não me vi desistindo, apesar de desejar acabar de uma vez. Os quilômetros foram passando e as subidas não chegavam ao fim. Cada vez mais íngremes, a altimetria chegava perto dos 1.570 metros. Os voluntários animavam as curvas acentuadas e deixavam de fora qualquer tipo de tentativa de desistência. Eu não pensava sobre, mas o céu começou a ficar escuro e minha preocupação se acentuou naquele momento.

O Pico do Itapeva era o ponto máximo daquela prova. Com a altimetria beirando os 1.800 metros, me aterrorizei de certa forma. Era fácil continuar? Talvez, mas minhas pernas estavam pedindo a massagem que desvalorizei no dia anterior. Não sei ao certo o motivo, mas meu pensamento foi longe e comecei a me aproximar da fé que estava cessada em mim. Acredito que esses momentos servem para nos guiar para aquilo que achamos que conhecemos sobre nós mesmos e o que pensamos que é certo, para que continuemos fazendo o que estipulamos para nosso bem estar. Eu apreciei a vista como não tinha feito antes. Apesar de ficar nublado a cada minuto, eu entendi a beleza de uma prova de longa distância em uma montanha.

Eu desci correndo o caminho de volta para a cidade. Descidas duras e escorregadias, perfeitas para aqueles que adoram velocidade e gostam de arriscar suas vidas em beiradas estreitas. Confesso que sou parte desse grupo, mas me mantive focada em somente voltar sem danos. O caminho era de últimos dez quilômetros. Após me perder em um momento da prova, por falta de aviso de uma voluntária (depois de meditação, ignorei o fato de desejar gritar nessa hora), tive que repor meu tempo em um sprint final. Não estava morrendo, mas a sensação de que tudo estava doendo era grande.

Cinco horas e quarenta e cinco minutos. O tempo foi esse marcado no meu Garmin. Eu estava feliz e drenada. Minha dieta se resumiu em um litro de Coca-Cola, três géis de carboidrato e três pães franceses. Diante da perda de quase quatro mil calorias, me senti seca em um momento complicado de resistência final. Reconheço que o meu tempo foi um tempo básico e natural de muitos ciclistas. A prova tem até oito horas de duração. Aceito minha marcação com honra, apesar de saber que poderia ter feito melhor.

O campeão, Otávio Bulgarelli, fez em curtíssimas três horas e vinte e oito minutos, se não me engano. De longe, uma marcação surreal para uma pessoa. Não diferente, ele desmaiou na chegada, mas até eu estaria feliz desmaiando com esse tempo. De toda forma, a chuva chegou depois de um longo percurso de muito suor. A água escorreu pelo meu rosto e se misturou ao sal que saía de mim. Fiquei feliz, grata e cansada ao mesmo tempo. Minha vontade foi de ficar sentada esperando o reboque – meu pai e seu lindo carro com um banco maravilhoso.

Depois de voltar para o Rio, senti meu corpo mais forte e fiquei admirada com o meu rendimento durante toda a etapa. Diferente do que alguns acharam, eu não fiz a L’étape visando o pódio. Eu me inscrevi em um momento em que eu nem sabia ao certo o que era ciclismo. Fui crescendo com cada pedalada em lugares novos e desafiadores. Em cada trecho complicado de subida e descidas penosas. De longe, a prova foi uma conquista pessoal para que eu pudesse me manter focada em uma única coisa: meus músculos em sintonia com meu corpo. Alguns preferem meditação, eu prefiro a tentação de me render ao cansaço e a dor. Insano? Provavelmente, mas eu afirmo que é bom e vale a pena.


Luana Ucha – 7º Período

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